Sim, há quem pague 23.950 euros por uma garrafa de Romanée-Conti

É uma indecência que os grandes vinhos só estejam ao alcance de alguns, que não possam ser bebidos por mais gente. Um vinho é uma bebida, catano!

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Nelson Garrido

O que fazia se tivesse 23.950 euros para gastar? Não, essa do “casava-me” não cabe aqui. Mas, sei lá, podia comprar um carro, investir num plano reforma, amortizar o empréstimo da casa, dar quase uma volta ao mundo… Tanta coisa que se pode fazer com 23.950 euros! Podia também encher a despensa com uns 7 mil litros de azeite, quase 40 toneladas de batatas ou cerca de 10 mil frangos do campo em dia de desconto numa grande superfície (e os dias de desconto agora são todos os dias). Ou, então, comprar uma garrafa de Domaine Romanée-Conti 1993. Sim, é quanto custa este vinho na Garrafeira Nacional, em Lisboa. Não é um vinho qualquer. Estamos a falar de um dos grandes tintos do mundo. Só o nome diz tudo. Na Borgonha, ou até mesmo no mundo, não há outro produtor mais famoso e admirado.

Vinho é uma bebida com mais de 80% de água. Mas o segredo do elevado custo de uma garrafa de Domaine Romanée-Conti não está nos restantes 20% — nos ácidos, nos taninos, no álcool e em tudo o mais que compõe um vinho. Está na precisão e equilíbrio de todos os elementos, na terra onde nascem as uvas e, sobretudo, na identidade secular e mítica do nome.

Na aparência, a vinha de La Romanée-Conti, com as suas paredes de calcário, não tem nada de muito especial. São apenas 1,814 hectares de bardos projectados contra as curvas de nível sobre uma encosta suave de argila e calcário partido junto à aldeia de Vosne-Romanée, na chamada Côte de Nuits, onde se produzem os melhores tintos da Borgonha. No total, são 22.500 videiras, todas de Pinot Noir. O que distingue esta vinha, a que o famoso cruzeiro dá uma dimensão quase religiosa, é a sua história (o vinhedo original foi plantado no século XV pelos monges de Saint-Vivant) e a sua classificação: grand cru, chancela atribuída aos melhores de entre os melhores terroirs da Borgonha, os chamados climats, parcelas bem delimitadas e com características particulares ( subsolo, solo, altitude, exposição, influência dos ventos, do gelo, do sol, das águas, etc.) que as tornam únicas e especiais.

De entre os mais de mil climats classificados como Património da Humanidade na Borgonha, só 37 são grand cru. Alguns destes vinhedos têm inúmeros proprietários. Um dos maiores e mais conhecidos, Clos de Vougeot, por exemplo, tem 55 hectares e 89 proprietários. Quando um grand cru pertence a um só proprietário é considerado um monopole. É o caso de La Romanée-Conti.

Nos melhores anos, La Romanée-Conti produz apenas cerca de seis mil garrafas. O vinho é vendido apenas em caixas de doze garrafas, mas só uma é de Romanée-Conti. As outras 11 são de outros grands crus da mesma casa: La Romané-Saint-Vivant (2), La Tâche (3), Les Richebourg (2), Grands Échézaux (2) e Échézeaux (2). Mesmo as colheitas mais recentes superam os 10 mil euros. O 2015, por exemplo, custa perto de 15 mil euros num site americano. Em 2014, num leilão em Hong Kong, a Sotheby’s vendeu uma colecção de 114 garrafas de Romanée-Conti (seis garrafas por colheita desde 1992 até 2010) por 1,62 milhões de dólares!

Já percebeu a razão por que este vinho é tão caro? É uma loucura, mas a culpa não é da Garrafeira Nacional.

Eu sou um borgonhês incurável. Adoro a delicadeza e a subtileza dos bons Pinot Noir. Também vou às nuvens com os grandes Chardonnay da Côte de Baune, vizinha da Côte de Nuits e que engloba os lugares sagrados dos brancos da Borgonha (Corton-Charlemagne, Mersault, Puligny-Montrachet, Chassagne-Montrachet). Mas a minha Borgonha é a dos remediados. Só consigo chegar aos vinhos de segunda e terceira linha e mesmo estes já não são baratos.

Uma das maiores tristezas de quem gosta de vinhos e não tem muito dinheiro é não poder conhecer esses vinhos míticos, sejam da Borgonha, de Bordéus ou de qualquer outra grande região do mundo. Sem os provar, nunca teremos todos os dados de comparação para podermos avaliar devidamente qualquer outro vinho. O nosso termo de comparação será sempre mais limitado, mais terreno.

É uma indecência que os grandes vinhos só estejam ao alcance de alguns, que não possam ser bebidos por mais gente. Um vinho é uma bebida, catano! Não é nenhuma obra de arte intemporal. Um vinho, por melhor e mais caro que seja, tem um prazo de vida relativamente curto. E é para ser bebido. Pode gerar muito dinheiro em leilões, mas, no final, o que se consome é o líquido, não o rótulo. 

Mas imagino-me na pele de um milionário excêntrico e a gastar 23.950 numa garrafa de Romanée-Conti. Pego no copo e detenho-me longamente a cheirar o vinho, para descobrir tudo o que possa fazer parte do seu bouquet especial. Admito ficar logo emocionado. Na verdade, sou um choramingas, embora não pareça. Depois de levar o vinho à boca, é certo que me perca na descoberta dos seus mistérios, do seu carácter especial, e é possível que tenha duas reacções. A primeira de desilusão: “Então isto é que é o Romanée-Conti?”. A segunda de espanto: “Porra, é caro, mas é mesmo bom!”. 

Continuando a imaginar-me na pele de um milionário excêntrico, claro que partilharia a garrafa com uns amigos, mas sem lhes revelar o nome do vinho, para me deliciar com os seus disparates, as suas adivinhações, as suas mudanças de humor e de opinião, e no final, todo insuflado de vaidade, olhar para as suas caras e perceber o prazer infantil de estarem perante o objecto sonhado e a viver provavelmente uma das melhores experiências das suas vidas.

Nesses momentos, o tempo parece parar. Mas, na verdade, tudo se acaba em meia dúzia de minutos. É então que olhamos para a garrafa vazia e percebemos que se haviam esvoaçado 23.950 euros. Obviamente que o milionário excêntrico não pensa nisso. Se estiver de bom humor, abre outra garrafa, de uma colheita ainda mais antiga, para impressionar ainda mais.

O que eu faria com 23.950 euros? Não, não comprava nenhuma garrafa de Romanée-Conti. Nenhum vinho, por melhor que seja, vale tanto dinheiro. Também não atafulhava a casa de arroz, batatas, azeite e frangos. Podendo gastar essa quantia num devaneio, fazia umas férias em São Tomé e Príncipe ou nos Açores e levava a mala cheia de tintos e brancos de segunda linha da Borgonha, muitos dos quais só diferem dos de primeira linha apenas no nome. Com jeito, ainda me sobrava dinheiro para vir carregado de queijo de São João do Pico e da Canada, de São Jorge.

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