O balão deste João também sobe, sobe pelo ar (e só pára na Tanzânia)
Acorda para voar. João Rodrigues é piloto de balões de ar quente no Parque Nacional do Serengeti, onde vive. Para fugir aos leões, hipopótamos e leopardos que lhe batem à porta de casa, faz-se de pássaro todos os dias.
Rsh, rsh, rsh. Duas da manhã e o ruído ritmado, como se alguém estivesse a comer batatas fritas do outro lado da janela, não deixava João Rodrigues voltar a adormecer. Rsh, rsh, rsh. Deitado na cama, olhos abertos, apercebia-se de pausas na cadência, separadas por intervalos mais ou menos regulares. Os silêncios duravam o tempo de mergulhar a mão na embalagem de plástico e pescar mais batatas. Depois, outra vez o barulho mastigado.
Era a primeira noite do piloto de balões de ar quente na Tanzânia. E foi dessa inocência que a curiosidade se aproveitou para o seduzir até à janela. Lá fora, a savana sem fim banhada pelas estrelas. Mas os olhos congelaram num vulto “enorme”. Correu a cortina. E lá estava ele. Pernas muito curtas, a pele quase nua. Gigante. Um hipopótamo. “Um hipopótamo a comer a erva junto de minha casa”, conta, a rir-se da improbabilidade de a cena se repetir na relva que está agora a calcar, no Fundão (ou então a troçar de um hipopótamo a comer um pacote de batatas fritas).
“Estive ali um bocadinho a ver, curioso, porque era a primeira vez, e fui dormir outra vez.” Mas a savana não se foi deitar com ele. “E, de repente, acordo com um barulho no telhado de zinco.” Na manhã seguinte, perguntou o que teria sido. Responderam-lhe, distraídos: “Ah, foi um leopardo a saltar de uma árvore, a caçar.”
Assim são as noites no Seronera, no Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia, África, onde João Rodrigues, 60 anos, um dos primeiros dois pilotos a ter licença em Portugal, mora durante alguns meses do ano (já tem novamente regresso marcado para 29 de Maio e estadia até 1 de Novembro).
Faz safaris a bordo de um balão de ar quente. Palmilha o parque todos os dias, antes de os próprios dias nascerem. É “um sonho”, que repete todas as alvoradas. Dura uma hora. Depois, o sol levanta, ele pousa e “amanhã há mais”.
“Poder voar todos os dias”: é uma boa razão para escolher a Tanzânia como destino? Se não for, João pode rapidamente pensar em mais. E a leveza com que as atira desarma qualquer um. “Porque aquilo lá é lindo, maravilhoso.” Assim, simples.
A “aventura em África” que o piloto desejava desde que se perdia nas fotografias da revista da modalidade, que assinou mal terminou o curso, em 1993.
Fez finalmente as malas em 2008 e ficou dois anos. Voltou a fazê-las, desta vez para a Turquia, onde já tinha estado em 2006 e 2007 (“Oh, as formações rochosas da Capadócia…”). Mas a “instabilidade política e os atentados terroristas começaram a afastar os turistas” e o mercado das viagens de balão de ar quente esvaziou. Em 2016, teve de encontrar uma nova corrente.
Voltou a contactar a empresa na Tanzânia e esperou por uma resposta positiva em Portugal (“as nossas paisagens e as flores...”), onde integra a organização do Festival Internacional de Balões de Ar Quente (FIBAQ), no Alentejo.
E, entre voos, o convite chegou: o português, natural de Mafra, deverá ficar no Serengeti até ao final de 2020, espera, com um sorriso. A seguir? Ainda vai ter de procurar a resposta nas nuvens. “Eu gostava de voar…”. Pausa, propositada, como se o onde pouco importasse. “No Botswana. No Vietname. No Canadá”, continua.
Mas de volta à planície imensa do Serengeti. O lugar onde a terra “continua até ao infinito”. João vive a duas horas da entrada do parque nacional. Ao Seronera, chega-se ou de carro ou de avião. “Há mercado para os balões” — com cada voo a rondar os 500 euros por pessoa, enquanto por cá uma hora no ar custa à volta dos 150 — e, tirando algumas “vezes que não se vê nada, só umas lebres”, João sobrevoa leões, búfalos, hipopótamos, girafas, elefantes (“a maior manada que vi tinha na ordem dos 250”), “milhares de zebras”. Durante a grande migração “o número estimado de gnus no parque flutua entre o milhão e trezentos mil e o milhão e seiscentos mil, distribuídos por três corredores”. “Posso mostrar-lhe uma foto?” Parece impossível, montagem. Mas é a “vida, em acção”. Selvagem.
O parque africano “é dos poucos do mundo que não tem vedações”, nem “junto às casas” (e daí o hipopótamo e o leopardo). Num balão, “há tempo para apreciar, porque é um meio aéreo que se desloca muito devagar”. Imagine: está num miradouro. “Ei, que paisagem lindíssima. Então agora imagine deslocarem-se à altura do miradouro, ao longo da paisagem.”
Costuma dizer que é “dos poucos touros que tem ligação com o ar em vez de com a terra”. Isto porque, antes do balão, já se atirava de pára-quedas. Recuámos. O ano era 1992. João Rodrigues era militar pára-quedista e voluntariou-se para integrar uma equipa que iria inovar as demonstrações de queda-livre que faziam quase todos os fins-de-semana, em várias zonas do país, em acções de recrutamento. Em vez dos saltos, “que ficavam caros”, iriam levar um balão, que podia ficar preso por cordas e “envolver as populações”.
Um ano depois, ele e Aníbal Soares, os dois pára-quedistas seleccionados, concluíram a licença com a ajuda de um inglês que tinha um balão, no Alentejo. “Acabámos por ser os primeiros pilotos de balão de ar quente portugueses”, diz, “e a partir daí estivemos sempre ligados aos balões”. Juntos fundaram a primeira empresa portuguesa dedicada ao balonismo (Publibalão) e a primeira escola do país para pilotos de balões de ar quente, sediada em Fronteira. “Eu podia dizer que, tirando muito raras excepções, os indivíduos que andam a voar em Portugal foram nossos alunos.”
Ao recuarmos mais ainda, João Rodrigues queria pilotar aviões. Foi com a mesma idade que costumava olhar para a chaminé da olaria que tinha perto de casa dos avós. “Aquele fumo sai com tanta força, que se eu pusesse um balde voltado ao contrário ele voava”, pensava. “Troca-se o balde por um cesto”, e o que é isto, se não o “princípio dos balões e do ar quente?” Era o princípio de um sonho, que agora anda por aí, a voar. Perdão, a flutuar.