Cabemos todos no ecrã dos Baleia Baleia Baleia

Nasceram de jams informais numa sala de Cedofeita, no Porto. Baixo afiado como guitarra e bateria vitaminada. Isso e um olhar mordaz sobre a nossa sociedade tecnológica. Rock sátiro, rock catarse, rock à séria no álbum de estreia dos Baleia Baleia Baleia

Foto
Mariana Vasconcelos

“É sempre Verão no ecrã. E os corpos estão sempre nus. E há tantos gatinhos no ecrã. E sushi. E bolinhos. E coisas boas”. Não somos nós que o dizemos, mas é verdade que há muito de tudo isto nos ecrãs que comandam os passos da nossa vida. “O realismo mata sonhos, o optimismo nada faz. Isto só pode ser o fim, tenham pena de mim”. Devíamos ter, mas não temos. Afinal, como ter pena de quem, quando diz estas coisas, ou melhor, quando canta estas coisas, e por vezes até berra estas coisas, o faz como se quisesse levar o mundo à frente, armado com um furacão sónico nascido da união de baixo afiado como várias guitarras, bateria enfurecida e doses pouco moderadas de sátira? Não, não tenhamos pena.

Baleia Baleia Baleia é o nome da banda. São Manuel Molarinho (voz e baixo) e Ricardo Cabral (bateria). Andaram a dar concertos atrás de concertos após o primeiro, que aconteceu em 2016 no Zigur Fest, festival em Lamego que é importante para esta história (os Baleia Baleia Baleia fazem parte do catálogo da Zigur Artists, estrutura discográfica emanada do festival que, este ano, se realiza entre 29 de Agosto e 1 de Setembro).

Foto

Portanto, os Baleia Baleia Baleia andaram em palco a aprimorar esta coisa “gutural” que nasceu enquanto Manuel e Ricardo se iam encontrando para jams informais na sala de ensaios que o baterista tem em Cedofeita, no Porto. Manuel sentiu “vontade de regressar a uma vertente mais directa, mais punk”, de “sentir aquela adrenalina a tocar”. Ricardo entregou-se ao prazer libertador do stoner rock. Nenhum deles imaginava uma banda assim. “Mas foi nesta linguagem que nos encontrámos”, explica Manuel Molarinho ao Ípsilon numa manhã em Lisboa. Chegaram, então, a isto: um álbum de estreia homónimo em que a sociedade tecnológica é esmiuçada nas fragilidades que revela de nós mesmos, em que intemporais polícias do bom gosto convivem com a moderníssima sede de satisfação cada vez mais imediata – e “sac’aplicação” no telemóvel inteligente.

Os Baleia Baleia Baleia são punk visceral a atirar-se às esperanças e frustrações da sua geração, umas vezes com humor e desencanto – “Despi o fato de astronauta, vesti o de caçador/ troquei o cartão de estudante pelo de empreendedor”, em Bebé Nestlé –, outras com romantismo não isento de um vago desespero – “Só preciso de alguém que me diga as horas/ que eu nunca sei a quantas ando/ nem por onde ando/ nem para onde vou”, ouvimos em Interdependência (frase chave: “Só preciso de ti, só preciso de tudo”).

Pela formação baixo-bateria, associam-nos aos Death From Above 1979 – mas eles trocaram a precisão maquinal dos canadianos pela “utilização do erro, das oscilações de ritmo” na gravação do disco, forma de representarem sonicamente “a incapacidade de perfeição que nos torna humanos”. Pela forma como lançam um olhar verrinoso e mordaz para aquilo que os rodeia, pela forma como a voz de Manuel Molarinho ganha, muitas vezes, diferentes entoações, qual sátiro muito sério na sua função, percebe-se que os Mão Morta, não sendo modelo estético, são referência simbólica. “Do ponto de vista temático e de abordagem aos temas é uma influência bastante grande em mim”, diz Manuel Molarinho. Não por acaso, o álbum homónimo que agora nos chega teve como título provisório Verão do Entulho, homenagem ao Primavera de Destroços editado em 2001 pela banda bracarense. Porém, não nos devemos focar demasiado nestes pontos cardeais.

No caso dos Baleia Baleia Baleia, nome retirado, muito a propósito, de um meme célebre em terras brasileiras (“Baleia dá tiro em outra baleia / Manchete do jornal no dia seguinte: 'Baleia baleia baleia'”), devemos concentrar-nos, primeiro, na expressão que, nas jams informais na sala de Cedofeita, Manuel e Ricardo extraíram da “linguagem universal do rock”. Devemos ter em atenção, depois, aquilo que nos diz a meio da entrevista o vocalista e baixista: “A minha grande banda de referência são os Sonic Youth, mas nunca fiz música influenciado apenas por música. Sempre me fez confusão ter por referência apenas aqueles que praticam a mesma arte. Houve uma altura da minha vida em que li muito Boris Vian e o surrealismo dele foi muito importante para o que andava a fazer. Nesta banda, a maior fonte de inspiração é o dia-a-dia, é a rotina das pessoas na sociedade contemporânea, é a informação que recebemos, toda ela filtrada pelas redes sociais.”

Espicaçar as pessoas

Como tantos agentes da cena independente portuguesa, Manuel Molarinho e Ricardo Cabral dividem-se entre várias actividades. O baterista também faz parte da equipa da Zigur e é técnico de som do Teatro Municipal Rivoli. O baixista, entre outras coisas, actua a solo enquanto O Manipulador, integra os Stereoboy de Luís Salgado, os Burgueses Famintos, uma banda de improvisação, e é responsável pelo festival itinerante Um ao Molhe, dedicado a “one man bands” e que, actualmente, já percorre território português, espanhol e francês – este mês, nomes como Surma, Homem em Catarse, Joana Guerra ou o próprio O Manipulador apresentar-se-ão em Ponte de Lima, Roriz, Gafanha da Nazaré, Vila Pouca de Aguiar e Bragança. “Não há orgulho em ser pobre e precário, mas se há coisa que não quero perder é o espírito de entreajuda”, acentua Manuel. Multiplicando esforços entre todas essas funções, garante ter nos Baleia Baleia Baleia a expressão “mais parecida" com a sua "postura no dia-a-dia”: “Será o meu heterónimo mais sociável”, atira com uma gargalhada.

Em Baleia Baleia Baleia, há riffalhada bamboleante e headbanging bem medido – e uma citação descarada de Whole lotta love, dos Led Zeppelin, em Buéda amor para dar. Há a correria paranóica de Quero ser um ecrã, há o jogo de tensões de Sacaplicação, há a forma como usam nas canções referências contemporâneas em linguagem despudorada. A fechar o álbum, surge um épico de 14 minutos chamado Interdependência. Assente numa linha minimal, motorika vitaminada, rock sónico à procura de ar puro, psicadelismo estelar, lima a mordacidade, elimina a ironia e fecha com chave de ouro tudo aquilo que ouvimos até ali chegar. “Claro que temos vontade de espicaçar as pessoas, mas isso não passa por fazê-las sentirem-se mal ou excluídas. Queremos afastar-nos o mais possível da ironia pela ironia. No fundo, o que queremos dizer é que precisamos todos uns dos outros.” É isso que repetem, nas mais diversas formulações, ao longo dos 14 minutos da canção. No rock dos Baleia Baleia Baleia (próximo concerto dia 26 de Maio, no Mercado Negro, em Aveiro), falhamos e indignamo-nos e aborrecemo-nos e desesperamos e rimos e celebramos. Com eles. Todos juntos.

Sugerir correcção
Comentar