A social-democracia como “terceira-via”
Pedro Nuno Santos pode dar as voltas ao mundo que achar mais interessantes, mas acaba sempre pela inevitabilidade.
1. Os portugueses e os socialistas não tardarão a dar-se conta do interessante trilho que Pedro Nuno Santos (PNS) vem fazendo no sentido de abandonar um certo “esquerdalho folclórico” para assumir, completamente, o património fundador do Partido Socialista português. Este “caminho aberto”, usando o título do livro sobre governação que António Costa publicou no início desta década, merece, da nossa parte, um impulso para o fazer descobrir, para lhe destapar a “careca”, salvo seja.
PNS fez publicar, neste jornal, um ensaio, que a todos recomendamos, e que tinha como título "A social-democracia para além da 'terceira-via'". Desde o seu entendimento das razões que levaram à atual solução governativa, até à reinvenção dessa social-democracia, falando dos desafios que se nos colocam e atendo-se, sobremaneira, à opção programática “blairista” (ver P. Mandelson), Santos faz-nos concordar para discordar, ou discordar para podermos concordar.
“Num momento em que a social-democracia está em forte retrocesso político em toda a Europa, o Partido Socialista, em Portugal, é uma exceção”, diz PNS. À primeira vista, numa observação particular e doméstica, todos tenderíamos a concordar. Mas nós vamos mais fundo (ver D. Thome), para divergir.
Na União Europeia de hoje há uma plataforma política informal (que tinha toda a vantagem em se institucionalizar e substituir o Partido Socialista Europeu) composta por três realidades muito características e que resultam mais da visão política dos líderes do que das soluções ideológicas ou programáticas que as suportam ou integram. Entre Tsipras, Macron e Costa há reduzidas diferenças, há olhares semelhantes quanto ao futuro, mesmo que as suas origens se profanem afastadoras. Tsipras fez um governo com uma força de direita, governou ao centro e reorganizou a sua visão da Europa e do papel da Grécia no mundo; Macron assume o centro com colossal influência da agenda social-democrata e entende bem o papel da Europa e da França neste tempo de globalização; Costa garantiu uma solução governativa que advém de circunstâncias várias. A primeira, resultante da impossibilidade prática de um apoio do PS a um novo governo do PSD/CDS, que impeliu as conversações à esquerda; a segunda, a realidade de a nossa esquerda da esquerda ser composta por partidos do parlamentarismo burguês (ver K. Liebknecht), institucionais, mas nunca assumidos na vertente populista; a terceira, o contexto próprio de Costa – sem Costa nunca teria havido “uma solução de governo maioritária”, nunca teríamos sobrevivido mais do que parcos meses (ver A. Freire). Costa é, por isso, a garantia de uma solução que, sem ele, nunca adviria, que, sem ele, teria levado o PS à instabilidade e, quem sabe, à caducidade. Fortuna e virtú, como nos dizia o imenso Maquiavel.
Há, contudo, um alerta que importa fazer. Os níveis de apoio da atual solução governativa vão apagar-se. Porque o que lhes deu gás (retorno de direitos e consagração de nova despesa pública) não pode continuar no universo da nossa (obrigatória) monomania pelas contas públicas saudáveis e porque o país carece, em emergência, de medidas de política de médio-prazo que os partidos conservadores de esquerda (ver J. Wyllys) ainda não permitem.
2. PNS diz-nos que a “terceira-via” foi, até à grande recessão de 2008, a referência principal da social-democracia na Europa. Há, na leitura de PNS, um grave erro histórico. Esta “terceira-via” de PNS não é mais do que uma titulação temporal (1990/2010) da nossa velha consagração de socialismo democrático ou de esquerda moderada (ver C. Amorim). A “terceira-via” dos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas foi sempre o ponto de coerência e convergência da esquerda que se opunha ao socialismo científico na sua aplicação soviética e que se guerreava em duelo com a democracia cristã, movimento que cristalizou, durante décadas, uma visão estratificada e confessional das sociedades.
Esta “terceira-via” mantém-se hoje, mas com formulações diferenciadas, mesmo que a esquerda radical dela desconfie (ver L. March). Desde logo, os sociais-democratas são de entendimento que a globalização deve ser profundamente regulada, que a igualdade de oportunidades e a justiça social devem ser, cada vez mais, pontos centrais da ação dos Estados e dos sistemas regionais de poder (ver F.H. Cardoso). Em simultâneo, a transfiguração dos movimentos de direita, pela total subjugação da política à economia “livre e selvagem”, fez também eclipsar a Teoria Social da Igreja (ver D.L Vieira) e deduziu a democracia-cristã do que ainda conta em política.
PNS, de passagem, consagra uma janela a que dá o nome de “capitalismo global” (ver C. Furtado). Santos não fez o que se impunha, explicando o que queria dizer com tal determinação e como podem, os que se ganham no mérito, na liberdade e na democracia radical (ver E. Graeff), confrontar tal enunciação. Compreendo a dificuldade, porque Santos não pode dizer que é contra a globalização, porque a globalização é irreversível e só os movimentos populistas, de todos os tipos, a querem fazer parar, mesmo que utilitários das redes, mesmo que clientes do iOS e do Android.
PNS diz que a política “blairista” aceitou a lógica mercantil nos serviços públicos (ver J. Filippon). Ora, quem estudou ciências da administração demonstra facilmente que foram os trabalhistas de Blair que fizeram regressar a regulação depois da dama-de-ferro, que retornaram serviços ao universo do visto público, que valorizaram a saúde e a educação para todos como nunca antes tinha acontecido, nem com os trabalhistas pré-Thatcher.
O que leva ao sucesso discursivo, por vezes primário e enceguecido, de que o “blairismo” foi o coveiro da social-democracia? Tão só um gesto, tão só uma guerra – a do Iraque (ver I. Ramonet). É claro que a realidade inglesa, implicada pelo facto de nela estarem tempos políticos, económicos e sociais dissemelhantes, ampliou essa deceção, é claro que o jeito de ser inglês, escocês ou irlandês, comporta outros enredamentos para a política interna e externa que levam a um ensarilhar complexo da atitude partidária, é claro que o sistema eleitoral de Sua Majestade é quase negacionista de movimentos marginais e, por isso, eles, esses extremos, se revelam em trabalhistas e em conservadores. E a moderação definha hoje com Jeremy Corbyn e com Boris Johnson.
PNS foi a 1981 e recuperou a moção de Marcelo Curto, no congresso que opôs Soares ao ex-secretariado. Se antes, nas lutas com Manuel Serra ou Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, as questões relativas à opção partidária pela “classe média” já se tinham confirmado vencedoras, nunca mais, a partir desse maio de 1981, o PS se afastou dessa mesma “classe média” (ver A. Nove). A questão sindical, a forma de organizar o partido, as opções pelas elites internas, as escolhas culturais, as exterioridades proclamativas nas datas chave da democracia de Abril, sempre fizeram o PS preocupado com os mais débeis, mas sempre o garantiram assegurado e vencedor pelo voto dos mais remediados e inquietos.
Também do ponto de vista eleitoral o PS português sempre “promoveu um discurso que visava explicitamente as classes médias mais qualificadas e as suas aspirações de mobilidade social, em detrimento das preocupações com os trabalhadores industriais dos sectores tradicionais” (ver D.W.L. Wang) como bem diz Santos. Foi sempre assim em 40 anos e é assim hoje com o Governo de Costa. Nenhuma novidade se apresenta, portanto.
3. Santos diz-nos, comprovadamente, que os partidos social-democratas raramente ultrapassam, nos dias de hoje, 20% de apoio eleitoral. É cristalina a observação. Mas ela é também válida para todos os outros universos partidários. Já quase não há países, com sistemas de representação plural, onde sobrevivam maiorias absolutas de uma só bandeira. E esta nova realidade pode não ser má para a vida democrática deste nosso tempo.
PNS diz ainda que, por negligência ou escolha, a social-democracia deixou de representar os eleitores com baixas qualificações. Ora, esta constatação resulta mais da prática política dos agentes do que dos sistemas. Advém mais da velocidade da vida, da nova realidade cultural, da mobilidade, do relativismo e da opção descartável dos valores, do que uma rejeição das opções partidárias (ver L.C.B. Pereira). PNS sabe, melhor do que qualquer um, que tudo é provisório no mundo em que habitamos, que a vida assume uma vertigem insuperável, que as formatações partidárias são, cada vez mais, de mínimos perante o objetivo incessante de obtenção de bens materiais e de acesso ao prazer (ver A. Clayton). E, perante isso, também os partidos tradicionais se espantam, porque deixaram de poder decidir arbitrariamente, sem sufrágio diário, sobre o futuro coletivo. É aqui que também emergem as novas agendas pela “transparência” que, não raras vezes, caminham com um mal do ser humano conhecido por voyeurismo.
Uma coisa é certa, sabendo Santos que a realidade o indaga, ele diz-nos que é “urgente trabalhar – sem os fantasmas inúteis da radicalização programática e do anti-capitalismo – num diagnóstico sério sobre os desafios que a transformação do capitalismo e as dinâmicas laborais e demográficas colocam à social-democracia. Precisamos de corrigir os excessos liberalizadores cometidos nos últimos 20 anos e repensar o papel do Estado nas políticas de crescimento, regulação e inovação” (ver L. Nassif).
Não poderíamos estar mais de acordo. Esta consideração transcrita é o maior elogio a Giddens (ver R. Antunes), é mesmo a essa mais simples “terceira-via”, aprovada em 1997, a que PNS regressa. Poderemos dizer, portanto, que Pedro Nuno Santos pode dar as voltas ao mundo que achar mais interessantes, mas acaba sempre pela inevitabilidade. É por isso que gostamos dele enquanto pessoa e enquanto político, porque nos surpreende mesmo quando, não parecendo, reafirma a nossa História de sempre e elimina os erros da narrativa político-partidária mais recente.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico