Segundo volume da colecção Ph. mostra como Paulo Nozolino perdeu a inocência do olhar
Livro com a chancela da INCM traça o percurso de mais de quatro décadas de trabalho de um autor definido como “testemunha em fuga”.
Enquanto vasculhava recentemente uma daquelas “malas que são difíceis de abrir”, pelas recordações que guardam, Paulo Nozolino (Lisboa, 1955) encontrou um molho de pequenas fotografias quadradas. Documentavam uma viagem à Grécia em 1972, na companhia dos pais e de uma avó. Ao passá-las, reparou que uma delas tinha um escrito por trás, feito com a letra da mãe: “Esta imagem foi feita pelo Paulo”. Foi um momento de “revelação” para o artista que o obrigou a corrigir aquela que apresentava como a sua primeira fotografia (a de uma namorada de quem se tinha separado). Começar com a primeira imagem que esteve durante décadas diluída numa autoria familiar (pediu a máquina ao pai para a tirar) foi uma opção deliberada e a favor da organização cronológica com que foi concebido o segundo volume da colecção de livros Ph., uma série com chancela da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM) que, ao longo dos próximos anos, procurará fixar a obra dos mais representativos autores da fotografia contemporânea portuguesa.
Nessa imagem captada na Acrópole, em Atenas, que mostra o Erecteion, o templo consagrado a Atena e Posídon, o professor de fotografia e curador Sérgio Mah – que ajudou o artista a escolher e a sequenciar as imagens do livro que é esta terça-feira lançado na Biblioteca da Imprensa Nacional, em Lisboa – vê sinais premonitórios do que viria a ser a obra de Paulo Nozolino ao longo de mais de quatro décadas de trabalho. Ou seja, uma permanente “revisitação do passado” sustentada “numa atitude atenta e crítica perante o mundo”, num apelo “pela memória dentro da actualidade e à compreensão da mesma dentro da história”. Estão lá ainda a “atracção pelas ruínas”, o “carácter alegórico dos escombros” e a reflexão sobre “a experiência da viagem”.
Hoje, Nozolino consegue ver nesta fotografia os interesses, os sinais e os apelos de que Mah fala. Mas o arranque efectivo do seu trabalho, em meados dos anos 70, haveria de percorrer outros caminhos. "Nessa altura o que eu queria era rasgar o mundo, queria ver tudo, tinha fome, tinha fome do mundo. Ao fim de muitos anos, essa fome começa a amainar. E comecei a interessar-me por outras coisas, a ser confrontado com outras coisas, e a perceber que a vida não é o agora, o já, mas é uma continuação de um passado longínquo. Apercebi-me que o mundo era diferente daquilo que eu imaginava, os homens eram diferentes do que imaginava. Foi então que comecei a interessar-me pela História."
Ao lado da vista de Erecteion, ainda no meio de ensaio de Mah sobre a obra do fotógrafo, surge a fotografia de um muro de execução no campo de concentração nazi de Auschwitz (as duas fotografias são inéditas), num exercício revelador do esforço de confronto de imagens e de complexificação do olhar (e do sentir) que haveria de tornar-se fundamental na obra do fotógrafo a partir do final dos anos 1999, sobretudo a partir da apresentação do tríptico Blodelsheim. “Estas duas imagens mostram precisamente os dois momentos mais marcantes da minha vida como fotógrafo, um totalmente inconsciente ao registar a beleza da Acrópole, a beleza Clássica; o outro, aquele dia em que, em 1994, fui a Auschwitz e descobri uma realidade que acabou por mudar a minha vida. Em frente daquele muro de execuções compreendi muita coisa: o que era a tragédia humana; o que era a tragédia da Europa; e o que tinha sido a tragédia do Holocausto”, explicou ao PÚBLICO Paulo Nozolino, que considera este livro não apenas um olhar transversal sobre a sua obra, mas também um exemplo de como alguém vai perdendo “a inocência do olhar”. A partir de certo ponto, confessa, procurou “as coisas mais duras, na tentativa de “ver a realidade tal qual ela é”. “Já não estou a fazer imagens belas, mas sim imagens que considero necessárias, que dizem aquilo que quero dizer. Daí veio a necessidade de associar imagens umas às outras.”
"Neste livro, ao posicionar essa primeira imagem ao lado de uma outra de um muro de execuções em Auschwitz, feita 22 anos mais tarde, confirma-se também a ideia de que o imaginário fotográfico de Paulo Nozolino esteve sempre marcado pelo peso inelutável de uma imaginação trágica, cujas origens estéticas, morais e discursivas remetem como sabemos para a Antiguidade grega", escreve Mah no ensaio Um certo Canto.
Para a organização deste volume, o curador e o fotógrafo revisitaram quase 500 fotografias durante "quatro longas sessões". A partir dessa escolha, havia dois caminhos para a concretização do livro, um passaria pela tentativa de criar um "objecto novo", misturando imagens de tempos muito díspares, criando novos diálogos, outra, a que veio a ser seguida, adoptaria por uma organização cronológica a partir dos diálogos já estebelecidos. "Achei que [o livro] tinha de ter uma preocupação didática, que as pessoas vissem qual foi a minha primeira fotografia e qual tinham sido as últimas. Que compreendessem como o meu olhar foi evoluindo ao longo dos anos. Esse foi um dos protocolos que seguimos, a cronologia da séries, a evolução do olhar", explica o fotógrafo.
A edição dedicada a Nozolino mostra as suas obras mais marcantes, resultado de viagens, de deslocações ou aproximações como “testemunha em fuga” (Sérgio Mah). Deambulações e reflexões que, ao longo dos últimos 46 anos, deram origem a Limbo, Solo, Penumbra, Usura, bone lonely, Makulatur ou, mais recentemente, a Loaded Shine (monografia a editar pela Steidl ainda este ano).
Embora inspirada em séries semelhantes internacionais, como a francesa PhotoPhoche (que já ultrapassou os cem volumes, ou a espanhola PhotoBolsillo, que dividiu a colecção em duas linhas editoriais, uma dedicada à fotografia espanhola, outra dedicada à fotografia latino-americana, a Ph. (desenhada por Paulo Condez, do atelier Nada) apresenta uma formato diferente das tradicionais séries de livros de fotografia do género: tem um tamanho maior e abdica de imagens na capa. Para Nozolino, que considera "difíceis de manusear" os livros pequenos ao estilo PhotoPoche ("Não são os ideais para fotografia"), o formato escolhido para a Ph. é "o ideal" e "dignifica" o trabalho dos fotógrafos. "Acho que houve uma boa escolha de formato, de impressão, de tudo. Estou muito contente com o resultado."
Um "dever cívico"
Apesar de não gostar de “entrar em colecções” (já tinha dito que não a outra série semelhante), Paulo Nozolino afirma que aceitou ver o seu trabalho na Ph. por sentir “um dever cívico” em tornar acessível a um público alargado o essencial da sua obra, já que considera “alta” a qualidade geral da edição da INCM e muito baixo o valor de cada livro, 19 euros. Não há desculpa para não se comprar um livro assim, para se começar uma colecção. Há público para isso. Há muita gente na fotografia, a querer ser fotógrafo e que não tinha acesso ao meu trabalho."
Houve, por outro lado, uma razão porventura mais singela e que está tão somente relacionada com a forma “educada e delicada” com que o pedido lhe foi feito pelo director editorial da série, o fotógrafo e produtor cultural Cláudio Garrudo. O plano de Garrudo (que lançou o primeiro volume da série dedicado a Jorge Molder em Novembro do ano passado) passa por publicar, pelo menos, dois livros por ano, começando por aqueles que considera os nomes “obrigatórios” no panorama ligado à fotografia contemporânea portuguesa.
Para Garrudo, a relação preço-qualidade é um dos principais argumentos da série. "Sabemos que os livros de fotografia têm preços de venda ao público elevados. Mas achamos que este preço de capa é acessível e tentará formar novos públicos. É um preço que tentará democratizar o acesso os livros sobre fotografia contemporânea portuguesa." A colecção já começou a ter distribuição internacional (Espanha e Itália) e a ambição é alargá-la a outros países. A promoção internacional da série começa também a dar os primeiros passos, quando, este ano, por ocasião do Outono Fotográfico, for apresentada na Galiza.
E haverá espaço para editar autores mais novos? “Haverá, mas queremos começar por aqueles que têm um corpo de trabalho mais consolidado. Ao fazermos dois livros por ano, será inevitável chegarmos mais tarde ao trabalho de autores mais novos”, disse Garrudo ao PÚBLICO, que já escolheu o nome do próximo autor que verá o seu livro publicado em Novembro deste ano. Para já, é segredo.