Margarida Tengarrinha, a “avó radical” da praia da Rocha, faz 90 anos
Os rapazes da praia da Rocha, seus amigos, chamam-lhe a "avó radical”, porque ainda aceita boleias em mota-de-água e pratica natação. Na Universidade Sénior, onde lecciona, os alunos ficam presos à cor das palavras que usa para ensinar História da Arte.
A sala está em silêncio. A turma, cerca de meia de centena de alunos, mantém um segredo bem guardado. A professora, Margarida Tengarrinha, faz hoje 90 anos e estão a preparar-lhe uma festa-surpresa. A mulher que, recentemente, lançou mais um livro — Memórias de uma falsificadora —, dá lições de História da Arte na Universidade Sénior de Portimão, pinta, é elemento activo no Grupo de Amigos do Museu, e não pára de surpreender. “Não quero morrer sem fazer parapente”, promete.
Os nadadores-salvadores, na praia da Rocha, conhecem-lhe os hábitos. Quando mete os pés na espuma das ondas não é só para testar a temperatura da água. Lança-se no mergulho e faz um treino de natação que chega a durar 30 a 40 minutos. “Os rapazes [nadadores
salvadores] chamam-me a avó radical”, confidencia. A adrenalina corre-lhe nas veias deste os tempos da clandestinidade, quando fintava a polícia política do regime (PIDE) e saltava de casa em casa para não ser presa. “Volta e meia, os rapazes, meus amigos, convidam-me a dar uma voltinha de mota-de-água e eu alinho”, diz a sorrir, deixando transmitir a mensagem: a juventude é um estado de espírito.
Na Casa das Artes, onde funciona a Universidade Sénior, a presidente desta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), Fátima Negrão, não lhe poupa elogios: “Uma pessoa extraordinária, que os alunos adoram”. As aulas que dá, comenta, estão entre as mais concorridas. O número de presenças chega a atingir oito dezenas. Na passada segunda-feira, por ser véspera do feriado do 1.º de Maio, alguns alunos faltaram: “Estão à espera das visitas dos familiares”, justifica.
Em Moscovo — para onde partiu após a morte do companheiro, o escultor e pintor José Dias Coelho — trabalhou de perto com Álvaro Cunhal, entre 1962 e 1968. Entre ambos haveria de nascer uma amizade que ficou para sempre, tendo como ponto comum o gosto pelas artes. “Fiz o trabalho de picareta, pesquisa de dados, quando ele escreveu Rumo à Vitória”, revela. Agora, quando ensina História da Arte, empresta às palavras a cor e a paixão que imprime aos seus quadros e fala com a autoridade de quem conhece o valor da liberdade. Passou cerca de 20 anos na clandestinidade.
O azul do oceano entra pelas janelas do seu apartamento na praia da Rocha, onde vive desde que regressou ao Algarve, em 1986. “Desde pequena, este mar aqui em frente é a minha grande ligação ao mundo. Por isso, quando morrer quero ser cremada e as cinzas serão deitadas ao mar”. A relação com o campo, particularmente a zona do barrocal algarvio, manifesta-se quando desenha alfarrobeiras — a espécie da sua paixão. Mostra fotos de exemplares, com mais de três séculos. “São lindas, fantásticas”, observa. Estas árvores, mesmo quando se apresentam com o tronco rugoso — acusando os males e os sofrimentos passados ao longo da vida — não perdem a beleza. Talvez por isso, admite, a primeira exposição que fez, em 1987, tenha tido como cartaz a imagem de uma alfarrobeira tuberculosa. “Há árvores que agarram a rocha despida”, sublinha. A frase é retirada do livro A vida secreta das árvores, de Peter Wohlleben, que lhe serve de inspiração. “Fiz um quadro [sobre essa árvore na rocha despida] e ofereci ao meu médico”, sublinha.
O preço da liberdade
Margarida Tengarrinha, a professora, põe-se de pé na sala de aula, e anuncia: “Então, vamos lá começar”. Segue-se a revisão da matéria dada. Passa em retrospectiva a importância das obras de Almada Negreiros, Amadeu de Souza-Cardoso, Paula Rego, Júlio Pomar, entre outros — são mais de uma dezena os artistas que já foram objecto de estudo. Desta vez, a lição é sobre o mestre Abel Manta. Na aula anterior tinha falado de João Abel Manta — filho do mestre, seu amigo e colega na Escola Superior de Belas de Lisboa, de onde foi expulsa e depois proibida de frequentar todas as faculdades do país por razões políticas. Na secretária tem duas folhas de papel com apontamentos. “Gosto de preparar as aulas, posso ter um lapso de memória”, esclarece, quando entrevistada pelo PÚBLICO. Sobre o mestre Abel Manta, assegura que é “o maior retratista do seu tempo”. Projecta imagens das obras do pintor, impressionista, salientando o significado humano e social nos retratos que produziu. À medida que as palavras lhe vão saindo, para explicar o percurso de vida do autor — com passagem por Paris e a influência que recebeu de Cézanne na arte de pintar a natureza-morta — não esconde a sua admiração pelo mestre. “Quando ela gosta, sabe-se logo, é muito sincera”, revela Fátima Negrão, uma das alunas que vira com o facto da professora pôr “muita paixão” nas ideias que transmite.
No apartamento da praia da Rocha — donde se vê só mar e não os prédios em redor —, há um quadro seu que se destaca no conjunto: o desenho de um tronco de árvore a representar corpos entrelaçados. “A partir do livro de Peter Wohlleben, criei maior liberdade para imaginar a vida das árvores, mais intensa e mais perto de nós”, revela. A memória arrasta-lhe o pensamento para 1946, quando estudava na escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL). Nessa altura, recordou, iniciaram-se as Exposições Gerais de Artes Plásticas — um projecto que marcou este sector cultural em Portugal e que era “de nítida oposição ao regime salazarista e ao Secretariado Nacional de Informação (SNI), dirigido por António Ferro, executor da ‘política do espírito’ de Salazar”. As recordações são muitas e a passagem dos anos, agora 90, não apagam os acontecimento mais marcantes, como a morte do seu companheiro, José Dias Coelho, morto na noite de 26 de Dezembro de 1961, pela PIDE, quando tinha 38 anos. Uma dor que Zeca Afonso imortalizou com a canção “A morte saiu à rua num dia assim...”
A boa falsificadora
Ao título inicial do livro Memórias de uma falsificadora (edições Colibri), foi acrescentado o subtítulo: “a luta na clandestinidade pela liberdade em Portugal”. Há uma explicação para o acréscimo: “Podia ser confundida com essas outras falsificações de que se fala na actualidade”, esclarece. Do que se trata, revela, é de contar como falsificava, na clandestinidade, documentos de identificação que permitiam iludir as autoridades. No seu entender, a obra não é mais do que uma publicação “à jornalista”, que levou dois anos a preparar, incluindo a redução do número de páginas para tornar a leitura mais acessível. “Aliás, o que eu fiz toda a vida, no fundo, foi ser jornalista”, sublinha. Com esta profissão, trabalhou na Rádio Portugal Livre, no Avante, na Voz das Camaradas, tendo-se iniciado na Modas & Bordados, quando a revista foi dirigida por Maria Lamas. Em 2014, a Direcção Regional da Cultura atribui-lhe o Prémio Maria Veleda em reconhecimento pela actividade cultural que tem desenvolvido no Algarve e pela sua intervenção cívica.
Hoje, ao fazer 90 anos, os seus alunos juntaram-se aos membros do “Grupo de Amigos do Museu”, para lhe prestarem homenagem num jantar no hotel Júpiter. Porquê? “Pela pessoa que foi e é”, sintetiza a presidente da Universidade Sénior.
Retalhos da vida de uma menina burguesa
Margarida Tengarrinha foi uma das “meninas burguesas” do seu tempo que deixou o Algarve para prosseguir os estudos em Lisboa, onde encontrou outros jovens algarvios. De entre os elementos do seu grupo de amigos de infância, conta-se o ex-cônsul do Reino Unido na região, José Manuel Teixeira Gomes Pearce de Azevedo, já falecido, neto do antigo Presidente da Republica, Teixeira Gomes. “As famílias burguesas foram todas estudar para Lisboa”, recorda. Dessa época, destaca ainda Estela Avelar, médica, de 93 anos, também ainda no activo nas Termas das Caldas de Monchique
O pai da pintora, José Manuel Tengarrinha, exerceu o cargo de gerente do Banco de Portugal em Portimão. O avô Tengarrinha, de Loulé, foi construtor civil. “Foi ele que abriu a antiga estrada do Algarve para Lisboa, passando pelo Barranco do Velho [serra do Caldeirão]”, recorda. Prosseguindo na viagem às recordações da meninice, lembra-se, durante a 2.ª Guerra Mundial, de ver os batelões carregados de cortiça ou latas de conserva para os “barcos alemães atracados ao largo de Portimão”. O Algarve nessa altura, evoca, vivia um período de prosperidade. As exportações com os negócios da guerra fizeram fortunas. Na fábrica de conservas Feu & Hermanos (actual Museu de Portimão), exemplifica, quem controlava a produção era um alemão. “O senhor Dirks estava cá para garantir a exportação e eu era amiga da filha, Ilse Dirks”. Quando frequentava a casa da família germânica, nada lhe parecia estranho. “Não sabia o que era aquilo que ensinavam às crianças, a saudação Nazi, pois, tinha seis ou sete anos”.
O início da actividade política organizada dá-se em 1948, quando passa a integrar o MUD Juvenil na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL).
A partir dos anos 1960 surge o turismo e o Algarve entra numa nova época. Com o fim da guerra, as conservas que alimentavam as tropas e a cortiça que era usada no isolamento térmico dos tanques, particularmente na frente oriental de combate, perdem valor de mercado. Os empresários mudam de ramo. “Os donos das fábricas de conservas entraram na indústria do imobiliário”. Surgem então as torres da praia da Rocha, Armação de Pêra e noutros sítios ao longo da costa.
A história da economia da região é familiar a Margarida Tengarrinha, não apenas pela experiencia vivida, mas também pelo trabalho desenvolvido nesta área enquanto membro da direcção regional do PCP. “Já em Moscovo, estava habituada a interpretar números e gráficos quando trabalhava de perto com o Álvaro [Cunhal]”, explica.
Mas é o desenho e a pintura que, actualmente, lhe preenchem grande parte dos dias. “Estou a preparar uma exposição, a convite da Direcção Regional da Cultura, para Sagres”, adianta, salientando que já tem prontos para esta mostra mais de duas dezenas de quadros. Para além das exposições individuais e colectivas em que participou, é ainda autora dos livros Samora Barros Pintor do Algarve, Da Memória do Povo — Literatura Oral do Concelho de Portimão e Quadros da Memória, sendo ainda co-autora, com José Dias Coelho, do livro A Resistência em Portugal. Planos para o futuro? “Com este livro de memórias [de uma falsificadora] acho que cumpri o meu dever, mas vou continuar a pintar e desenhar”, diz.
No catálogo da exposição sobre José Dias Coelho, patente no Museu do Aljube desde o dia 25 de Abril, há uma frase em destaque, que também lhe toca de perto: “Em toda a parte há um pedaço de mim que se quer dar”.