Será possível criar um ovócito humano com uma simples amostra de urina?
Cientista portuguesa lidera um laboratório na Universidade de Leiden, na Holanda, onde estuda o processo de formação dos ovócitos, as células reprodutoras femininas. Quer encontrar “a chave” para criar um ovócito in vitro a partir de células estaminais.
Há uma misteriosa viagem que acontece no corpo de uma mulher que está a ser exaustivamente investigada pelos cientistas. É aquela que leva uma célula a transformar-se num ovócito que, depois, amadurece no ovário. Susana Chuva de Sousa Lopes, que ganhou uma bolsa de dois milhões de euros do Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês), é uma das cientistas que está a tentar criar um ovócito humano no laboratório. O sucesso da experiência pode significar uma solução para casos de infertilidade que hoje têm apenas respostas pouco eficazes e muito invasivas. A investigadora participa nas jornadas de Sociedade Portuguesa Medicina da Reprodução (que fez para o PÚBLICO a banda desenhada que acompanha este texto), que decorrem esta sexta-feira e sábado, na Figueira da Foz.
Susana Lopes dirige um laboratório no Departamento de Anatomia e Embriologia do Centro Médico da Universidade de Leiden, na Holanda, onde estuda há vários anos a ovogénese nos seres humanos. Passado quase um ano do início do projecto financiado pelo ERC e que arrancou em Junho de 2017, a cientista está actualmente a analisar tudo o que se passa in vivo, ou seja, como é que uma célula se transforma num ovócito no tecido de ovário. Só depois de desvendados todos os sinais e caminhos que são usados no ambiente “natural” é que será possível tentar replicar esse processo numa bancada de laboratório. A curto prazo, acredita, será possível criar um ovócito humano in vitro a partir de tecido do ovário mas, a longo prazo, o objectivo é mais ambicioso. A cientista portuguesa acredita que dentro de dez ou 15 anos será possível criar um ovócito a partir de células estaminais, ou seja, a partir de um pedaço de pele ou de uma simples amostra de urina.
Susana Lopes nota que há actualmente várias equipas no mundo empenhadas em conseguir criar um ovócito humano em laboratório. Recentemente, por exemplo, foi divulgado o resultado de um estudo, publicado na revista Molecular Human Reproduction, de uma equipa de cientistas do Reino Unido e dos EUA que desenvolveu pela primeira vez ovócitos humanos em laboratório. Porém, o sucesso desta equipa ainda parece ter algumas limitações. “A caracterização que apresentam não é muito detalhada. O que descrevem é parecido com um ovócito mas faltava uma caracterização mais profunda”, comenta Susana Lopes, ressalvando que, apesar de faltar alguma informação importante, aquele estudo é um relevante passo em frente. A cientista admite que já tentou usar a mesma técnica desta equipa no seu laboratório mas, para já, sem sucesso. Segundo explica, a outra equipa usou material “fresco”, uma amostra retirada dos ovários de mulheres que fizeram uma cesariana para ter um filho (algo que é permitido no Reino Unido mas não na Holanda), e não tecido criopreservado como geralmente acontece nestes procedimentos. Esse “pormenor” pode fazer a diferença, admite Susana Lopes.
Um ovócito in vitro para quê?
A investigação de Susana Lopes tem um caminho próprio para meta do ovócito humano in vitro. “Estou a caracterizar muito a fundo o material in vivo para conhecer muito bem as características de todos os passos durante a ovogénese. Isso vai permitir que, quando estiver a trabalhar com cultura de células, tenha um parâmetro de comparação. Ou seja, não quero ter só uma célula que se pareça com [um ovócito], quero ter uma célula que seja igual.”
E para que poderá servir um ovócito humano gerado em laboratório? “Estamos a trabalhar com tecido de ovário. Este material é de doentes de cancro, muitas delas muito jovens, que vão ser tratadas com quimioterapia ou radioterapia. Depois do tratamento, ficam inférteis”, explica a cientista, adiantando que nestes casos o ovário pode ser retirado e criopreservado. “Mais tarde, quando estas mulheres quiserem ter filhos, este tecido de ovário é colocado novamente no seu corpo, mas normalmente vive apenas entre quatro e seis meses e depois morre.” O procedimento é invasivo, é acompanhado de tratamentos hormonais, na maioria dos casos implica recorrer a fertilização in vitro (FIV) e não tem uma taxa elevada de sucesso. Em resumo, não é o ideal.
“Imagine agora que com este tecido que foi retirado da doente eu consigo fazer crescer o ovócito no laboratório. Porque é isso que eu quero. Depois faz-se uma FIV e coloca-se o ovócito fertilizado.” Uma solução que parece muito mais simples, não fosse este decisivo passo de fazer crescer um ovócito no laboratório tão complexo. Um ovócito in vitro, sublinha Susana Lopes, também simplificava a actual possibilidade de preservar os ovócitos de uma mulher com cancro antes de ela iniciar o tratamento oncológico que a vai tornar infértil. Hoje, estas mulheres têm de estar em idade fértil (a produzir ovócitos maduros) e com uma situação clínica em que podem adiar o início do tratamento oncológico para salvaguardar a possibilidade de terem um filho mais tarde. E nem todos os cancros podem “esperar”.
Por outro lado, se for possível replicar no laboratório o processo que leva um ovócito imaturo e pequenino até à sua fase matura já não será necessário submeter o corpo de uma mulher a estimulação hormonal. “Aí, podíamos retirar um pedaço de ovário em qualquer idade e depois deixar os ovócitos crescer e tentar ter filhos na idade em que se quiser. A mulher fica livre do seu ritmo biológico”, refere a cientista.
Mas ainda podemos recuar mais, admite Susana Lopes. Quando conhecermos este processo de maturação em detalhe, será mais fácil chegar ao primeiro passo desta viagem: as células estaminais. “Aí já não precisamos de ovário. A doente vai ao quarto de banho, faz chichi, retiramos as células que vêm do rim e da uretra e dessas células já conseguimos uma maneira não invasiva de reprogramação, ter células estaminais e depois tentar chegar até ao ovócito.” Ficção científica? “Acho que será algo possível dentro de dez ou 15 anos”, defende a investigadora.
Susana Lopes argumenta que “a ciência normalmente acontece em choques”. O que significa que basta que alguém “descubra a combinação chave de factores do passo A ou B e tudo isto será uma espécie de continuação da FIV”. A cientista lembra ainda que a esta frente de investigação pode ainda juntar-se a poderosa ferramenta da edição genética que permitiria a correcção de erros ou problemas nas células estaminais que depois seriam usadas para fazer os “melhores” ovócitos.
Será esta a rotina a cumprir no futuro para ter um filho? “Não sei se será uma rotina. Mas, na verdade, a situação está a tornar-se problemática porque as mulheres estão a adiar cada vez mais a maternidade e há sempre o problema do ciclo biológico. Quando os ovócitos acabam, acabam.”
O mistério do grupo dos “eleitos”
O mundo de possibilidades que se abre com a criação de um ovócito humano in vitro é sedutor mas os cientistas ainda enfrentam uma série de dificuldades. Apesar dos impressionantes avanços feitos em experiências com ratinhos onde já se chegou ao ponto de conseguir criar embriões sintéticos a partir de células estaminais, há muitas diferenças entre este modelo animal e os humanos. E muitas perguntas sem resposta do nosso lado. Como é que algumas células no ovário são “eleitas” para iniciar um processo de maturação e outras não? Que sinais e vias são usados no corpo de uma mulher para seleccionar naquele mês um exclusivo grupo entre a meia dúzia e uma dúzia de ovócitos para começar a maturar e deixar o resto do “reservatório” dormente? E, no grupo que começa a maturar, o que acontece para que um dos ovócitos seja o dominante e os outros morram pelo caminho?
“É isso que estou a estudar. O que acontece in vivo. Para depois, quando começar a fazer estudos em cultura, saber se estou a ir na direcção certa. Estudo não só os ovócitos mas também as células somáticas que emitem sinais”, adianta Susana Lopes. Para já, percebeu que há uma ordem nos sinais (hormonais e outros) emitidos e identificou algumas vias que têm de ser activadas e em que momentos. “Agora se isso vai resultar num processo in vitro já é outra questão.” Se tiver sucesso, a cientista portuguesa terá, desde logo, uma vantagem em relação a outros projectos de investigação. É que, sublinha, o seu protocolo está assente em produtos “100% aprovados” para que possam ser usados imediatamente na prática clínica, ao contrário de outros estudos que usam, por exemplo, soro (de origem bovina).
O ovário, diz Susana Lopes, é um órgão muito dinâmico e é muito difícil estudar porque não há muito material para estes estudos. “O material que estudo vem de doentes que retiram o ovário em idades jovens na expectativa de tentar ter filhos mais tarde e deram o seu consentimento informado para usarmos este tecido se morressem”, explica. As doações de ovários para investigação serão casos extremamente raros. O material disponível é muito limitado e, por isso, outra fonte que Susana Lopes admite poder vir a usar são os ovários de pessoas que queiram mudar de sexo, ainda que estas pessoas passem por um processo de tratamento hormonal que pode, de alguma forma, “contaminar” o órgão.
Por fim, se Susana Lopes (ou outro grupo de investigação) tiver sucesso e conseguir produzir ovócitos in vitro, há mais uma longa e tortuosa estrada pela frente. É preciso depois ver o que acontece com a fertilização, a implantação e o desenvolvimento do embrião. A taxa de sucesso da FIV ainda está longe de níveis óptimos.
Quando recebeu o convite para participar numa das sessões das jornadas da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, Susana Lopes pensou que era uma brincadeira por causa do local escolhido que, por coincidência, foi onde nasceu. Susana Chuva de Sousa Lopes está desde 1994 na Holanda e vai regressar à sua cidade natal, Figueira da Foz, com uma impressionante bagagem científica para partilhar com os conterrâneos e especialistas desta área.