O vampiro, as hienas e a zombie

João Botelho diz que o filme tem 78 cenas e que apenas duas foram “inspiradas” na minha obra. Mas eu provo que, sem as cenas exclusivas do meu livro, este filme não existia.

Em 11/04, recebi uma carta dos advogados da Ar de Filmes, produtora do filme Peregrinação, acusando-me de ter proferido contra ela “acusações e imputações falsas” de plágio do romance O Corsário dos Sete Mares, “sem qualquer fundamento”, “causando-lhe danos avultados e pondo em causa o seu bom nome, honra e reputação”. Se não me calasse, recorreriam aos tribunais para serem compensados. Na manhã de 12/04, o “artigo de defesa” do sr. João Botelho (JB) era publicado no PÚBLICO. Timing perfeito: na véspera a produtora silenciava-me com ameaças para que o realizador me pudesse desacreditar sem contraditório.

Acusei JB de uma adaptação não autorizada de partes do meu romance no seu filme, porque se apresentou como único autor do argumento. Em circunstância alguma, proferi acusações ou imputações contra a Ar de Filmes. Mencionei apenas os seus encontros com a Casa das Letras/Leya, que os contactou, a pedir esclarecimentos. Nestas reuniões, como representante do realizador, a produtora admitiu o plágio, pois só assim se explica ter aceitado que a editora fizesse uma cinta para o livro, referindo a adaptação de episódios do romance.

A Ar de Filmes e JB nunca quiseram ver-me ou falar comigo. Em Dezembro, num e-mail para a editora, pedindo para mo reenviarem, chegou-me uma mensagem jocosa em forma de carta, supostamente do realizador, fazendo mea culpa pelo plágio. Nada que se pareça com a “carta delicada e pessoal que – no puro intuito de usar de boa educação e de respeitar uma eventual susceptibilidade, ainda que descabida, de uma senhora que desconhecia – por gentileza lhe remeti”, que JB menciona no artigo, dando o dito por não dito e, tal como a sua produtora, contradizendo o que haviam acordado e ameaçando-me com tribunais e compensações.

Ameaçam-me e querem dinheiro porque me queixei do atropelo que fizeram aos meus direitos de autor e propriedade intelectual? Eu, a lesada, nunca pedi qualquer pagamento, apenas exigi que indicassem a obra e a autora, como a ética e a lei obrigam, no filme, DVDs, cartazes, textos e entrevistas. Não o fizeram e julgaram-se a salvo, porque o assunto ficava no segredo dos gabinetes da produtora e da editora.

“Vivemos tempos ruins, os de Trump, os do triunfo das inverdades”, diz JB em sua defesa, atacando-me em termos tão grosseiros que não merecem resposta. Patético esforço de um náufrago que esbraceja para se manter à tona e se afunda mais depressa.

Vivemos num mundo de faz-de-conta, de falsos génios e ídolos de pés de barro, em que alguns se servem de todos os meios, mesmo dos ilícitos, em proveito próprio, vangloriando-se, impunemente, de serem vampiros que sugam o sangue das vítimas e lhes roubam a alma. No caso Deana Barroqueiro versus João Botelho, eu sou a Zombie e o realizador é o Vampiro, pois assim se rotulou, quando admitiu que vampirizou O Corsário dos Sete Mares, fruto do meu sangue, suor e lágrimas de quase cinco anos de investigação e escrita.

Em 2018, fazendo tábua rasa dos compromissos, JB continuou sem referir o meu livro como uma das fontes do filme, que está a ser exibido para as escolas, apresentando aos alunos muitas cenas de O Corsário dos Sete Mares de Deana Barroqueiro, como sendo da Peregrinação. O que, ao contrário do que dizem alguns comentadores, não é a melhor introdução à leitura da obra de Fernão Mendes Pinto, mas um pastiche enganador e antipedagógico. Como professora de Literatura Portuguesa, com 35 anos de serviço, não me pude calar.

O caso foi noticiado na imprensa de referência (como este jornal), que JB apoda de pasquins e os seus jornalistas de hienas, por terem denunciado o plágio, depois de lerem o e-mail com a sua admissão de culpa. O realizador diz que a acusação de plágio é infundada, mas, segundo a Sociedade Portuguesa de Autores e o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, “comete o crime de contrafacção (vulgarmente designado plágio) quem utilizar, como sendo criação ou prestação sua, obra, prestação de outro artista”; “seja mera reprodução total ou parcial”.

Movo-me no meio académico, por isso, o sr. Botelho faz questão de vincar que, como não conhece a minha obra (e adaptou-a?), ao contrário do que fez com Alexandre O'Neil, a quem pediu para “roubar” (aspas suas) o título de um poema, no meu caso, “não existia a necessidade de pedir qualquer autorização e apenas por princípios de trato dirigi posteriormente à autora uma comunicação”. A quem não tenha o estatuto de um O'Neil, JB já pode roubar (sem aspas, o verbo é dele) livremente, não apenas um título, mas toda ou parte significativa da obra? Se é assim que, em Portugal, se pratica a nobre Arte do Cinema, onde irá ela parar?

JB tem dito que levou um ano a adaptar a obra de Fernão Mendes Pinto (FMP), mas, ao mesmo tempo, fala das personagens, cenas e tramas de O Corsário dos Sete Mares atribuindo-as à Peregrinação. Se fez o que diz, como pode confundir as duas obras? Por desleixo ou má-fé? Ou, por não ter lido mesmo a Peregrinação, e vendo como o meu romance (recomendado pela Associação de Amizade Portugal-Japão, quando fez pesquisas para o filme) era uma espécie de guião – uma estrutura dramática em sete Actos/Mares, com cenas/capítulos, diálogos, monólogos e flashbacks –, pensando que eu me limitara a travestir os textos de FMP com novas roupagens, para atalhar caminho e poupar tempo, “inspirou-se” nele para o guião?

“Na verdade, o ‘pecado’ por mim cometido foi usar como inspiração uma ínfima e irrelevante parte do livro de Deana Barroqueiro, até agora desconhecido”, afirma JB. Sem acesso ao guião original, para o comparar com o meu romance e a Peregrinação, estou limitada às suas entrevistas e ao filme que vi apenas uma vez, enquanto ele tem acesso a todos os meus textos, que usa agora contra mim.

JB diz que o filme tem 78 cenas e que apenas duas foram “inspiradas” na minha obra. Mas eu provo que, sem as cenas exclusivas do meu livro, este filme não existia. Passo a enunciá-las:

– Todas as cenas da China com personagens femininas, que JB e a sua produtora admitiram como adaptadas. 1. A filha do monteo a tocar o erhu e a cantar o poema que musicaram; a ensinar FMP a ler; 2. Meng a lavar-lhe as cicatrizes das costas, com uma bacia de água com pétalas de flores; 3. As cenas das prostitutas com os diálogos sobre o Yin e o Yang, no sexo; 4. A menção ao Mercado dos Cavalos Magros, onde se compravam as esposas, etc.

– Na Peregrinação não há violações por António Faria ou outrem, inventei a cena com Pinto num certo contexto da narrativa.

– O episódio da japonesa Wakasa, a minha Madame Butterfly que casa com Pinto, a entrar no barco e a despedir-se dele no alto de um monte, faz parte da história que criei a partir de três crónicas da casa do senhor de Tanegashima (a Tanixumaa de Pinto) que traduzi de um estudo inglês. JB nem o nome da ilha sabe escrever, chama-lhe Tagenashima, que não significa “ilha da Espingarda”, pois já se chamava assim muito antes da chegada dos portugueses com as armas, sendo também o nome de família do seu daimyo Tokitaka. Os mosquetes e arcabuzes chamavam-se Tanegashima teppõ (tubos de fogo de Tanegashima).

– Não inventei nomes nem personagens no caso de D. Joana da Silva, a mulher adúltera. Ficcionei um escândalo da época, sem relação com FMP, a partir de arquivos e da História da Genealogia.

– Foi JB que referiu numa entrevista o “n.º 9 mágico”, como ideia sua. O número é cabalístico, mágico, da novena cristã e de outras superstições, herdadas da Idade Média. Como Pinto e o seu grupo oscilam entre oito e nove indivíduos e algumas tempestades são de nove dias, transformei-o num leitmotiv do meu romance.

– Das cenas comuns à Peregrinação e ao meu romance, como as da embaixada a Sumatra e da rainha da Etiópia, haverá muito para descobrir, comparando-as. Para JB basta mudar a cena de lugar, ou a personagem, para já não serem criações minhas e passarem a ser dele!

Em todas as suas intervenções JB cometeu erros crassos sobre a obra de Fernão Mendes Pinto, mostrando desconhecê-la. Com o meu romance aprendeu muito, decerto. Valha-nos isso!

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