Júlia, Andréia e Leidiane no Indie: elas vão sobreviver
O novo cinema do Brasil está em força no certame português, com duas primeiras obras documentais de óptimo nível: Lembro Mais dos Corvos e Baronesa.
Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor), Renata Pinheiro (Amor, Plástico e Barulho), Eduardo Lordello (Eles Voltam), Anita Rocha da Silveira (Mate-me por Favor), Affonso Uchoa e João Dumans (Arábia), André Novais de Oliveira (Ela Volta na Quinta)…
O IndieLisboa tem estado sempre atentíssimo ao novo cinema que se faz no Brasil, e volta a está-lo em 2018, com dois títulos de altíssimo nível na competição internacional.
Curiosamente, são ambos filmes que apostam na cada vez mais abrangente categoria dos “cinemas do real”, à imagem de grande parte do concurso principal de longas este ano: dois documentários, sim, mas também duas primeiras longas perfeitamente cientes da paisagem audiovisual em que existem, e que não se preocupam verdadeiramente com questões formais de género ou duração. Lembro Mais dos Corvos, de Gustavo Vinagre (repete quarta-feira, dia 2, às 20h30 no Ideal) e Baronesa, de Juliana Antunes (quarta-feira, dia 2, às 19h na Culturgest e sábado, 5 de Maio, às 22h, no Ideal) são filmes que confirmam e desmontam ao mesmo tempo uma certa ideia do Brasil moderno, e que desafiam os estereótipos.
Filmando aquela que se tornou sua “musa” nos últimos anos, a actriz transexual Júlia Katharine, ao longo de uma noite de insónia, Gustavo Vinagre (que conhecemos entre nós do Queer Lisboa) assina um filme que começa por se instalar no território sempre movediço do cinema queer e do testemunho de sobrevivente.
Mas Lembro Mais dos Corvos muito rapidamente se afasta desse papel para se tornar num jogo de cumplicidades entre director e actriz sempre à sombra do cinema. Foi o cinema que salvou Júlia, tanto o grande melodrama hollywoodiano como Laços de Ternura como os filmes de Ozu — de quem ela gosta muito mais do que de Kurosawa ou Mizoguchi porque ele conta histórias de vidas normais.
E o que vemos em Lembro Mais dos Corvos (título que faz referência aos Pássaros de Hitchcock) é uma personalidade em invenção e reinvenção constante aos nossos olhos, levando-nos a perguntar se estamos a ver um testemunho em bruto ou uma encenação de um testemunho que já foi ensaiado. Em qualquer dos casos, é impossível resistir ao modo como Júlia enche o écrã e como Gustavo a filma.
É também essa generosidade de olhar que sentimos em Baronesa, que começou por ser um trabalho de mestrado de Juliana Antunes e que se tornou num filme de corpo inteiro, co-produzido por André Novais de Oliveira. Andreia e Leidiane, duas moradoras da favela Juliana de Belo Horizonte, são as personagens deste documentário seco e atento que assume um olhar diferente sobre o quotidiano da favela: ver de dentro e através das mulheres que, na maior parte destes filmes, são relegadas para segundo plano.
Aqui, são os homens que quase não entram, e é o quotidiano delas, entre conversas mais ou menos brejeiras, manicures, saídas nocturnas e cartas à família, que nos permite ter uma visão mais “ligada à terra” e menos romantizada do que é viver numa favela. Apesar do cuidado formal do filme (cujos planos fazem por vezes pensar nas Fontainhas de Pedro Costa ou nos subúrbios de João Salaviza), não existe aqui nenhuma esteticização da pobreza nem nenhuma tentativa de articular os momentos filmados numa narrativa pré-definida.
Baronesa, título que se refere a uma favela vizinha, menos violenta, para onde Andréia se quer mudar, é tão-só uma celebração da força e da energia femininas. Gloria Gaynor cantava I Will Survive e é uma certeza que sentimos nestas mulheres da favela Juliana, mas também na Júlia que gosta de ver o sol nascer em São Paulo depois de uma noite a contar histórias. Elas vão sobreviver, dê lá por onde der.