“Para um chef ter um chapéu de missionário, ele tem de ter um de mercenário”
Em Lisboa para o simpósio Sangue na Guelra, o chef brasileiro Alex Atala falou de activismo, dos seus custos e das suas aparentes contradições, que, se calhar, são apenas pragmatismo.
Alex Atala, o mais famoso chef do Brasil, onde tem, em São Paulo, o restaurante D.O.M, esteve em Lisboa para participar no simpósio Sangue na Guelra, no dia 23. Subiu ao palco montado na Gare Marítima de Alcântara, para, ao lado de outros activistas ligados à cozinha – o tema do simpósio organizado pela Amuse Bouche (Ana Músico e Paulo Barata) foi Cooktivism –, falar sobre o trabalho do seu Instituto Atá, com o qual tenta resgatar ingredientes brasileiros, ajudar os produtores e encontrar formas mais sustentáveis de produzir alimentos.
No dia seguinte, no Hotel Ritz Four Seasons, onde na noite de 25 fez um jantar na suíte presidencial para 20 pessoas, conversou com a Fugas.
O que é que leva um chef de cozinha a transformar-se num activista?
O primeiro compromisso de um cozinheiro é fazer comida deliciosa. O segundo é não gerar prejuízo. Porquê? O activismo implica perder dinheiro, perder tempo, trabalhar para uma causa que muitas vezes é quase perdida. Falo de resiliência, de crença, e não dá para ter essas coisas se não se tiver força ou um suporte atrás, emocional, financeiro, o que seja.
No meu caso começou nessa busca de querer usar os melhores ingredientes brasileiros no D.O.M. Como não existia um mercado desses produtos, comecei por falar com os amigos, comprei uma terra para conseguir produzir, fui coleccionando experiências, na maioria das vezes desagradáveis.
Como cozinheiro, estou pronto para trabalhar dentro de uma panela, dentro de uma cozinha. Nunca pronto para trabalhar junto da natureza e menos ainda junto do homem. Existe uma teia humana que precede o alimento e muitas vezes a minha vontade de querer ter aquele ingrediente pode deixar mais problemas do que benefícios. Não é dando dinheiro que se conserta uma ferida. A relação do mundo com a Amazónia é de extracção e nunca de troca, as pessoas querem apenas tirar de lá.
No meu começo de Amazónia, fui lá, comprei uma terra, só colhi problemas. Aí aprendi que não dava para ser daquele jeito e fui procurar outros que pudessem ensinar-me. Fui falar com sociólogos, com antropólogos, não é exagero dizer que fui o primeiro chef a falar de antropologia na cozinha e a trazer claro que existe um lado comportamental do ser humano dentro do ingrediente, que precede a gente e que nós, cozinheiros, não pensávamos nisso.
Perceber que eu tinha sido treinado para cozinhar e não para lidar com tudo aquilo é o que me faz procurar outros saberes, e esses outros saberes transformam-me num activista. É um processo, não é um dia que acorda de um jeito.
O que é que essa teia humana implica, o que é que é preciso dar às pessoas, o que é que elas esperam?
Na Amazónia, quando a gente fala de comunidades tradicionais indígenas, é preciso saber qual é nível em que estão. Os baniwas, que são os primeiros trabalhos que fizemos com pimenta, conhecem o dinheiro, fizeram faculdade, posso pagar-lhes com dinheiro. Quando falo de yanomami, que é um índio que às vezes quer apenas um fósforo, dar-lhe dinheiro não tem valor nenhum. É preciso pessoas que saibam interagir e levar os benefícios reais para diferentes realidades.
Se eu der muito dinheiro a um baniwa, estou aumentando as doenças sociais, o alcoolismo, que também há na mais profunda Amazónia. No caso dos yanomamis, não se pode ficar trocando cogumelos que são vendidos em São Paulo em restaurantes finos por fósforos. Qual é a real necessidade deles?
Ainda que na mão do índio sejam entregues as panelas, os fósforos, o que é preciso ali é uma protecção educacional, médica, que os antropólogos que vivem ali vão nomear, e nós vamos, através do dinheiro, apoiar o trabalho dos antropólogos para que benefícios reais sejam levados àquelas comunidades.
Falou de causas quase perdidas. Tem sido muito difícil concretizar estes projectos?
Tem alguns que é fácil resolver e outros que vai ser difícil. Nem sempre é assim. Quando fundei o Atá, havia uma causa que eu achava impossível, que era a regulamentação do mel das abelhas brasileiras, que são mais de 300 espécies – isso está regulamentado, pelo menos no estado de São Paulo.
Com os yanomamis parecia que ia ser muito fácil, há muitos cogumelos, eles sabem colher, é só secar o cogumelo e trazer. Apesar de fazer muito sucesso entre os índios, e de todos os anos aumentar a colecta de cogumelos, o mercado não está assimilando muito.
Esta semana eu tinha quase 30 quilos de cogumelos secos, liguei para amigos, pedi ajuda, compra, paga o que puder pagar, para conseguir que outros chefs e outras pessoas reconheçam o valor daquele produto e comecem a usar. As pessoas, por não conhecerem, preferem comprar um cogumelo chileno ruim que sempre viram no mercado do que um que vem da Amazónia, dos índios, e que elas não sabem como usar.
Um dos projectos do Atá tem que ver com a produção de carne sustentável. O que é que isso quer dizer?
Hoje já temos seis fazendas no Brasil certificadas pela Rain Florest Aliance. O Brasil tem uma realidade de um boi por hectare, que é a produção extensiva, você pode criar um adensamento maior sem obrigatoriamente fazer confinamento. Tem um sistema chamado Voisin, de pasto rotacional, onde se consegue colocar até seis bois por hectare.
Pode melhorar a qualidade e sextuplicar o gado ou ensinar o dono da fazenda a conseguir maior eficiência e a recuperar as áreas degradadas, onde pode plantar fruta ou fazer consorciado, porco, mel, baunilha, fruta baru e outra que serve para vender no mercado, mas para alimentar o porco e criar um sistema que rende mais dinheiro do que a pecuária.
Pecuária que provoca uma enorme pegada ecológica.
Não queremos mudar a pecuária nem os números do Brasil. Entendemos que a carne é uma das commodities importantes para o meu país, não quero ir contra elas, quero encontrar um equilíbrio e uma contrapartida.
Sei que não vou mudar o Brasil inteiro, mas se a gente conseguiu mudar seis fazendas, quem sabe se no futuro não vamos mudar 20 ou 30. É um caminho, é a inspiração. Hoje, o Brasil também depende do milho, da soja, do arroz, do algodão, que são brutais para o ambiente. Não dá para produzir orgânico em larga escala? Como é que a Holanda produz? Como é que a França está produzindo? Existem novos modelos para a agricultura, eficientes, as pessoas vão é ter de perder o medo deles. Existe muito preconceito.
Outro dos vossos projectos tem que ver com a oleodiversidade. O que é?
Historicamente, cada nação indígena tem uma fonte de óleo, que vem de cocos diferentes da floresta. Pode ser patauá, frutão, baru, babaçu, a gente vai encontrar um monte de tipos de óleos vegetais dentro da floresta. Eles têm aplicações gastronómicas, medicinais... Existem outras alternativas e conhecê-las é fundamental. São sabedorias. Se não se conhece, não se protege. Hoje, o mundo usa três, quatro óleos: soja, milho, um pouquinho de azeite, palma, canola. Será que não existem outras possibilidades?
Esse projecto está na fase de investigação?
Mais de catalogar essas diversidades, são coisas que ainda não estão escritas. Os antropólogos fazem inventários, o que é que essa tribo come, que óleo é que eles usam... Oitenta óleos e nunca ninguém falou disso? Se a gente não conseguir nenhum fim comercial para eles, pelo menos têm de ser salvaguardados. São 80 óleos, 80 sabores, 80 possibilidades de uso.
Este ano organizou o seminário Fru.to – Diálogos do Alimento. Porque é que sentiu necessidade de o fazer?
É um congresso para falar de comida e não de cozinha. Do alimento. Porquê fazer em São Paulo, Brasil? Nenhum outro lugar do mundo está tão pronto para falar de agricultura, de produção de alimento em larga e pequena escala, de áreas degradadas a megalópolis, de populações urbanas a populações semi-selvagens ou selvagens. Essa palete de coisas infinitas está ali.
É importante discutir e trazer exemplos reais. Um dos objectivos é mostrar o pessoas que estão fazendo. Ernst Götsch é um suíço que mora no Brasil há uns anos e é hoje uma das principais figuras da agricultura sintrópica, da associação de plantas ou agro-floresta, em que uma beneficia a outra.
Trouxemos o Ron Finley, um negro americano do gueto que produz alimentos e faz com que a família volte a viver e trocar como família. Ele organiza hortas urbanas, ao fim-de-semana convoca as famílias para irem ajudar. Aquele estereótipo do pai a beber cerveja em frente da televisão assistindo futebol, a mãe gritando e o filho jogando videojogos. A partir do momento em que saiam de casa juntos e vão plantar, começam a olhar-se e a reconectar-se, plantam juntos, colhem juntos, vão comer juntos.
Num país como o Brasil, com uma sobrepesca gigantesca, é importante criar consciência do problema do mar, o Brasil não come peixe direito, deixa pescar de qualquer jeito, existe uma poluição marinha, um declínio marinho, um plástico causando um monte de problemas, e o Brasil está completamente desatento a isso, achando que ir para a praia é para apanhar sol.
Aí chega uma Céline Cousteau (neta de Jacques Cousteau) e faz as pessoas respirar duas vezes, uma vez da floresta, a outra do mar, esse ar que nós respiramos vem de lá também. Tem de proteger, e não é só o alimento, o surf ou a praia, é o ar.
A população mundial continua a aumentar, há uma preocupação crescente sobre como alimentar o mundo no futuro.
Acho que é inevitável. Mas pode ser menos pior e depende de cada um de nós. Sou um eterno optimista, mas tento manter o pé no chão. Não acho que em 2050 a terra vai ser um planeta maravilha. Mas depende da gente, hoje, começar a mudar.
Do que ouviu no Sangue na Guelra, o que é que mais o impressionou?
Fiquei muito impressionado com o Douglas McMaster [do restaurante Silo, no Reino Unido, um projecto de desperdício zero]. Vamos falar de gastronomia, de alta cozinha – superpop, não é? Há coisas que acontecem na gastronomia hoje e que me fazem vacilar um pouco. Será que não passou da conta? Tem uns exageros aí, mas tudo bem, todas as modas têm os seus exageros.
Quando a gente fala de sustentabilidade, hoje está desprovida de prazer. Está muito ligada a culpa, obrigação, as pessoas fazem coisas sustentáveis sem prazer. A gente tem de gerar prazer, sustentável tem de ser legal, cool, bacana, delicioso. Essas são as coisas que a cozinha tem hoje. Através do alimento a gente pode deixar no melhor sentido da palavra o sustentável mais sexy. E mostrar para as pessoas que é o elo de conexão de todos nós. Acredito que a cadeia do alimento é a maior ferramenta para a sustentabilidade do mundo.
Não existe uma contradição entre essa visão e jantares muito exclusivos e caros como o que vai fazer na suíte presidencial do Ritz?
Eu não cobrei e não ganho um tostão para fazer isto. Vim aqui pelo prazer de estar em Portugal. Entro sem dinheiro e saio sem dinheiro. Mas fico feliz por estar a fazer isso. Seria possível fazer o Sangue na Guelra sem dinheiro? Eu poderia ter o Atá se não tivesse o D.O.M? Eu brinco dizendo que para o chef ter um chapéu de missionário, ele tem de ter um de mercenário.
Não podemos ficar esperando que o Governo faça as coisas pela gente. O Sangue na Guelra não teve o apoio de grandes instituições. Mas eles fizeram, correndo o risco de ganhar uma grande dívida na vida. Conheço essa história, porque fiz o Fru.to. Cada mês tenho de pegar e olhar o Atá, recebi o relatório hoje, não deu prejuízo esse mês. (risos)
Não é uma contradição, é encontrar um equilíbrio, é isso?
O que é que devia ser mais atacado? O cara que só vive por dinheiro ou o que tenta equilibrar o dinheiro e a consciência? As pessoas falam “Como é que ele faz isso e vai ganhar dinheiro?”. Poxa, é feio ganhar dinheiro? Não mereço ganhar dinheiro? Não tem nada de errado nisso. Ainda bem que posso fazer isso. E ainda bem que posso contribuir para a causa.
Acredita que vai haver no futuro mais consciência e apoio por parte do Estado ou de grandes empresas?
Os maiores investimentos na protecção do meio ambiente são hoje feitos por empresas que prejudicam o meio ambiente: o petróleo, o plástico, a mineração. Uma das maiores pressões sobre o planeta é a produção de alimento.
A grande indústria vai ter de rever a sua posição. Está na hora de começar a pensar como… na verdade, já estão começando a esboçar isso. Depende de gritarmos. Depende de todo o mundo que come dizer “Estão fazendo dinheiro com isso, e a contrapartida?”. E a água? E a perda de biodiversidade? E os nossos mares? Tem de ter contrapartida.