“Em Peniche não há tortura, porque não há interrogatórios”
Não era uma prisão privativa da PIDE-DGS, mas o Forte de Peniche recebia os presos que o Estado Novo queria neutralizar.
Irene Pimentel, autora de várias obras sobre a PIDE-DGS, a polícia política do Estado Novo, explica quem eram os presos que chegavam ao Forte de Peniche, “o papão das prisões”, onde durante 40 anos foram presos os opositores ao regime do Estado Novo. Só homens, lembra a historiadora.
O que é que significa Peniche entre as prisões do Estado Novo?
Quando falamos em prisões políticas, há os presos preventivos, aqueles que eram detidos para apanharem um susto, mas que nem sequer iam a tribunal, e os presos que se queria neutralizar. O preso que se queria neutralizar era condenado a prisão maior pelo Tribunal Plenário – com penas que iam de um mínimo de dois anos até aos 20 anos (não era frequente mais do quatro ou cinco anos) – e esse ia geralmente para Peniche.
Ao mesmo tempo que era condenado a prisão maior, o Tribunal Plenário aplicava-lhe igualmente uma medida de segurança. Depois de cumprida a pena sentenciada pelo Tribunal Plenário, um pide ia a Peniche ver se devia ser cumprida a medida de segurança. Perguntava ao preso o que é que ele ia fazer no caso de ser libertado. Ele dizia que ia tratar da família, não ia dizer obviamente que ia fazer trabalho político, e o pide decidia se estava “regenerado” ou não. Se não acreditasse nele, se achasse que ele ia ser novamente dirigente clandestino do Partido Comunista Português [PCP], por exemplo, ficava mais um tempo preso, aquele que tinha sido definido pela medida de segurança (num prazo de três a seis meses, prorrogável até três anos). Para o preso político era muito pesado, porque nunca sabia quando ia ser libertado.
Quando era aplicada a medida de segurança, devia ser transferido para as prisões privativas da PIDE-DGS, que pertenciam ao Ministério do Interior, como o Aljube ou Caxias, e não ao Ministério da Justiça, como Peniche. Mas para não terem trabalho ficava mesmo em Peniche, o que era contra a legalidade do Estado Novo.
Só eram transferidos de Peniche para Caxias para serem separados uns dos outros, sobretudo quando se temia que se organizassem dentro da prisão. Os presos estavam normalmente organizados na cadeia, dependendo do partido onde estavam. A organização prisional mais longa pertenceu ao PCP. Ia desde ensinar matemática ou línguas, passando por alfabetizar quem não soubesse ler e escrever, até à discussão política e partidária. Isto desde que essa pessoa continuasse no PCP e não tivesse “falado” na cadeia.
Como Peniche junta os presos que o regime queria neutralizar, isso tornou-a símbolo de quê?
Peniche é o símbolo da prisão política em Portugal. Mas eu acho que devia ser tanto Peniche como Caxias. Essa é justamente a minha diferença em relação a outras interpretações, porque eu dou muita importância à questão de género e Peniche tem a grande desvantagem de não englobar as mulheres presas políticas, que vão para Caxias.
Acho que Peniche se tornou um símbolo porque era um forte com uma localização geográfica remota à beira do Atlântico. Era muito difícil fugir de Peniche, embora tenha sido daí que houve a fuga colectiva de dez presos em 1960, entre os quais estava Álvaro Cunhal [um ano depois tornou-se secretário-geral do PCP].
São os opositores mais importantes ao regime do Estado Novo?
Se Peniche era o papão das prisões acho que isso advém do facto de irem para lá os principais adversários do regime, homens, que chegavam a ser julgados. Se analisarmos estatisticamente, muitos dos presos ficavam só em prisão preventiva, portanto os seis meses, ou um ano e tal, que também era possível, ou então ficavam em prisão correccional, que era diferente da prisão maior. A prisão correccional não tinha medidas de segurança.
Os presos políticos mais importantes, os dirigentes, iam para Peniche, especialmente os do Partido Comunista. Por exemplo, Mário Soares nunca esteve em Peniche, porque acabou por nunca ser julgado e condenado.
Mas antes de o PCP se ter tornado, em 1934, na principal força da oposição definida por Salazar [o presidente do conselho do Estado Novo], também foi uma prisão que recebeu anarco-sindicalistas e republicanos reviralhistas. Depois, nos anos 70, recebe também a esquerda radical e os católicos progressistas. Ao longo do tempo recebeu igualmente elementos dos movimentos de libertação das colónias, mesmo da Índia, o que normalmente não é muito falado.
Como os presos chegam para cumprir pena, isso quer dizer que não há tortura em Peniche?
Sim, a não ser que se considere tortura nos anos 50 e 60 as condições prisionais, que eram muito más.
Em Peniche não há tortura, porque não há interrogatórios para extrair notas de culpa. Até 1971, esses interrogatórios eram feitos na sede da PIDE-DGS, no terceiro andar na Rua António Maria Cardoso. Até fechar o Aljube, o que aconteceu em 1965, também podiam ser feitos aí. Já depois de 1971, os interrogatórios eram feitos no Reduto Sul de Caxias. É claro que é por isso que também considero Caxias tão simbólica como Peniche. Mas Caxias continua a ser actualmente uma prisão.
Há presos políticos que morrem em Peniche?
Depois de 1945, que foi o que estudei, entre os 14 mortos conhecidos às mãos da PIDE, em Peniche não conheço nenhum. Quando estavam com problemas de saúde, o regime tinha muito cuidado para não poder ser acusado de matar presos políticos na chamada metrópole.
Evidentemente que em Peniche as condições prisionais eram muito más. Houve períodos, sobretudo nos anos 50, em que os presos nem podiam falar uns com os outros à hora do almoço. Os anos 70 já não têm nada a ver com isso.
Houve sobretudo castigos nos anos 50 e 60, por causa das greves de fome feitas pelos presos lá dentro, com as famílias cá fora a fazerem barulho. Também havia castigos nos casos de tentativa de fuga, quando eram apanhados. Voltavam para Peniche e iam para o Segredo, o isolamento.