“Bem escavado, velha toupeira”

Três artistas plásticas e uma professora de História juntam-se há cinco anos para fazer o seu próprio desfile do 25 de Abril. Vão integradas no cortejo da Avenida da Liberdade, mas não têm outra identidade que não a sua. Fomos ver como se preparam as pintoras de cartazes para sair à rua.

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A preparação Rui Gaudêncio
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Algumas letras Rui Gaudêncio
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Material artístico Rui Gaudêncio
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A grande faixa Rui Gaudêncio
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Frases Rui Gaudêncio

Durante 11 meses, jantam juntas, partilham petiscos, tomam chá. Fazem análise política à volta de um copo de vinho num restaurante de Lisboa ou naquela enorme mesa de madeira do atelier de Bárbara Assis Pacheco, em Campo de Ourique. Quando Abril amanhece, já as ideias estão maduras. Chegam para o lado pincéis e livros, cinzeiros e tintas, espalham fotografias antigas à sua volta e começa a acção.

São quatro as “toupeiras” que desde 2014 fazem intervenção na manifestação do 25 de Abril. Quatro amigas que decidiram animar a malta no ano em que se completavam 40 anos sobre a revolução. “A esquerda andava um pouco cabisbaixa, a necessitar de levantar o moral. E foi isso que procurámos fazer nesse primeiro ano: levar a esquerda à rua e lembrar que a esquerda já deu muito ao mundo e tem muito para dar, não tem de se esconder.”

Levaram a esquerda à rua, literalmente. Eram 92 cartazes com figuras de esquerda de todos os tempos, de Simon Bolívar a Pasolini, de Robespierre a Rosa Luxemburgo, de Che Guevara a Salgueiro Maia... Era a primeira vez que saíam à rua e eram quatro. “Era uma barraca não ter pessoas suficientes para todos os cartazes desfilarem.” Mas as pessoas foram aparecendo, amigos, amigos de amigos, amigos do Facebook, vieram mais cinco, e mais dez, e todas as causas do mundo desceram a Avenida da Liberdade naquele ano de fim de troika. “Bem, todas não, era impossível, às tantas tivemos de parar”, atalha Piedade Gralha, a professora de História deste grupo.

As outras três são artistas plásticas: Bárbara Assis Pacheco e as irmãs Teresa e Margarida Dias Coelho. Além da amizade, une-as o facto de “o coração bater à esquerda”. Mas são um grupo ad hoc, sem partido nem actividade política estruturada além dos jantares e petiscos que fazem juntas regularmente e onde vão fazendo a sua análise política própria. Em 2014, quando inauguraram o seu 25 de Abril, parecia-lhes que, para ter um governo de esquerda, não bastava o PS, tinha de haver o apoio dos partidos à sua esquerda. “Seria a maneira de tirar a direita do poder.”

Já antes tinham ensaiado o conceito nalgumas intervenções pontuais, claramente de contestação política durante o anterior Governo, a mais marcante das quais na grande manifestação contra o aumento da taxa social única (TSU) em Setembro de 2012. Nessa altura, o mote era: “O que farei com esta espada?” Cada vez que saem da toca, tocam uma pauta diferente. Durante esta legislatura, só saíram no 25 de Abril.

No segundo ano de desfile na avenida, meses antes das legislativas e da reviravolta que se seguiu, o mote era mesmo esse: “A Revolução morreu! Viva a Revolução.” E então saíram todas as revoluções à rua, 39 para sermos precisos: dois milénios e meio de revoluções, da greve sexual na Grécia Antiga de um grupo de mulheres encabeçadas por Lisístrata para pôr fim à Guerra do Peloponeso até às primaveras árabes do início desta década. A cereja no topo do bolo era o Syriza, acabado de vencer as legislativas gregas, rompendo a grande muralha da direita europeia.

Hoje, um dos rostos dessa “revolução”, Yanis Varoufakis, desce pelos seus pés a Avenida da Liberdade. O ex-ministro das Finanças grego, autor de Uma Proposta Modesta para Resolver a Crise do Euro e fundador do movimento pan-europeu DiEM25, vem a convite do Livre, mas todos andarão por perto. As Toupeiras entram no desfile logo atrás do movimento 1% para a Cultura, depois de nos primeiros tempos lhes terem colocado algumas dificuldades para integrarem o cortejo.

Neste ano em que se comemoram os 200 anos do nascimento de Karl Marx, o centenário do fim da I Guerra Mundial, os 75 anos da Batalha de Estalinegrado e os 50 do Maio de 68, as Toupeiras não escolheram uma efeméride, escolheram todas. É todo esse imaginário que é trazido para a actualidade, portuguesa — a situação dos despejos em Lisboa, a luta das operárias da Triumph ou a questão das verbas para a cultura — e mundial, com destaque para a Catalunha e para o Brasil, mas também para a Síria e a temperatura bélica mundial. “Bombing for peace is lake fucking for virginity”, lê-se num cartaz.

“Bem escavado, velha toupeira”, escreve-se noutro cartaz. É nesta frase de Shakespeare, citada por Marx em O 18 do Brumário de Luís Bonaparte, onde a toupeira é a revolução em marcha, que as quatro se inspiraram para baptizar este grupo. “Eu vou ser como a toupeira, eu vou ser como a toupeira, que esburaca”, canta Zeca Afonso no computador, não por acaso.

Neste fim de tarde de Abril, estão quase a chegar os amigos que vêm ajudar a pintar a faixa vermelha toda feita à mão, com a largura de metade da Avenida da Liberdade. A mensagem está desenhada, falta pintar: “Viva o Triumph das Operárias” em letras brancas, pontuada com cuequinhas e soutiens a negro.

Os cartazes estão prontos. Logo no início de Abril, escolheram as fotografias, fizeram o alto contraste das fotografias, projectadas numa parede forrada a papel de cenário. A Bárbara e a Teresa desenharam em cima da projecção e depois cada cartaz foi pintado com tinta de água. Todos os cartazes são únicos e feitos à mão. Só falta colá-los e agrafá-los aos cartões de duas faces que serão levados avenida abaixo. No final da manifestação, a maioria das pessoas que os transportam no desfile fica com o seu, em troca de uma contribuição com a qual o material do próximo ano será comprado.

Bárbara e Teresa afastam agora os pincéis e tintas de cima da mesa, desta vez para partilhar bolinhos de manteiga, queijo, chouriço e uma tarte de pato caseira. Podia ser cerveja, mas todas optaram por chá. Piedade vai buscar os libretos feitos para as manifestações dos anos anteriores, para mostrar o conceito. Em todos há uma frase em comum, a frase delas, roubada a Hannah Arendt: “Pertencer a um grupo é, antes de mais, um facto natural. Através do nascimento, pertence-se sempre a um qualquer grupo. Agora, pertencer a um grupo, nesse outro sentido de se organizar, é completamente diferente. Esta organização ocorre sempre em relação ao mundo.”

Piedade traduz, numa versão livre: “Isto mostra que nos podemos juntar e fazer coisas.”

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