Paulo Flores esteve na “boca do lobo” a juntar gerações angolanas

Cantor e compositor Paulo Flores fez com músicos de várias idades um disco que é um manifesto criativo. E vai apresentá-lo em Lisboa no próximo sábado, na Aula Magna, às 21h30, com vários músicos e convidados.

Foto
Paulo Flores MOOPIE

Um ano depois de ter soprado as velas de Bolo de Aniversário (2016), Paulo Flores lançou um novo disco que agora vai ser apresentado ao vivo em Lisboa, na Aula Magna, no próximo sábado dia 28 de Abril (às 21h30). Editado em Angola em Outubro de 2017, chama-se Kandongueiro Voador e foi criado numa cozinha luandense transformada em laboratório musical. Primeiro chamaram-lhe “boca do lobo”, que acabou por ser o título de uma das canções. Ele explica porquê. “Nós ficámos hospedados numa casa que era da nomenklatura, estávamos no centro de vários poderes e a criar música ali dentro. Então antes de lhe chamarmos laboratório chamámos-lhe boca do lobo. Ou seja: nós estamos ali a criar, a falar sobre os problemas sociais que alguns desses poderes criam, mas são eles que ao mesmo tempo nos dão a possibilidade de o fazermos…” O “nós” é um grupo alargado de músicos, da nova e da velha guarda. Há até um Semba da bênção, réplica do brasileiro Samba da bênção. “É uma homenagem ao Vinicius e ao Baden Powell e ao mesmo tempo simboliza o disco, que no fundo é juntar gerações, a guitarra congolesa com o prodígio do rap em cima do semba tradicional como se tocava antigamente, com as duas congas, sem bateria. É o meu testemunho para a juventude, como se eu dissesse que estou a ouvir e a tentar entender as linguagens deles.”

O tema que acabou por dar título ao disco, no entanto, foi outro. “Evoluímos para o Kandongueiro voador, que é uma música que fala da história daquela mulher, da Laurinda Gouveia, fotógrafa, que quando houve as primeiras manifestações dos meninos, dos “revus”, bateram-lhe, foi mordida pelo cão [dos guardas] mas não desistiu.” A cena repetiu-se noutra manifestação e ela acabou presa. “No julgamento deles, ela estava lá como arguida. Então a canção fala de um candongueiro que quer voar, mudar essas cores, esses tons todos, e é muito inspirado na atitude dessa cidadã corajosa.”

Um Caetano de Cuba

Há outras conexões ao Brasil no disco, como a gravação do tema baiano Yaya massemba, de Roberto Mendes e Capinan (“Esse tema explica a história dos escravos e também a forma como fomos construindo os nossos ritmos”), mas o tema Donde estás Caetano, não tem nada a ver com Caetano Veloso. “Pensei numa prima minha, filha de um militar cubano [Caetano]. Ele esteve na guerra, apaixonou-se pela mãe dela, que ficou grávida. Ele teve que voltar e então ela, já com 20 e tal anos foi à procura do pai, conseguiu encontrá-lo e ele foi viver com ela para Angola. Lembrei-me do Caetano como simbolizando as tropas cubanas e essas histórias de amor que se perderam.”

Dessa cozinha nos arredores de Luanda, no bairro do Benfica, no encontro de músicos que ali foi decorrendo entre Setembro e Outubro de 2016 e entre Dezembro e Janeiro de 2017, nasceu um “manifesto criativo” (que o disco também reflecte) e muitas novas canções, diz Paulo Flores. “Os rascunhos que saíram dali são muitos, ficámos com mais de sessenta músicas em arquivo.” E houve “uma aprendizagem mútua”: “Os músicos mais velhos que eu chamei também têm uma cabeça muito jovem, prontos para deixar os outros à vontade. E na comunhão da sensibilidade dos rappers e das pessoas do kuduro às guitarras e às malhas percussivas, foi um casamento fácil de fazer.” Entre as canções do disco estão Mariana e Kunanga de amor, ambas já com vídeos publicados no Youtube, e dois temas em crioulo cabo-verdiano: Cise Nos Rainha (dedicado a Cesária Évora) e Xinti.

Maior criatividade, no meio da crise

A realidade angolana continua a ser o pano de fundo das criações musicais de Paulo Flores. “Hoje existe uma noção de que todos devemos fazer parte do que queremos que mude. A sociedade civil está mais activa, já trabalha com coisas que não têm a ver com aparecer ou com o mediatismo, mas com a contribuição das pequenas comunidades. Este ano vou fazer 30 anos de carreira e temos um projecto do semba nas comunidades, de ensinar a tocar, de pôr os meninos a reciclar o lixo para fazer instrumentos… E há cada vez mais associações.”

Na música, apesar da crise económica (“há muito menos shows, os cachets baixaram para menos de metade”), mas em termos de criatividade Paulo Flores diz que “todos os meses aparece uma nova dança, uma nova batida. E às vezes cada bairro tem mesmo a sua sonoridade e até a sua linguagem, no significado que dão as palavras.”

Sugerir correcção
Comentar