Três mulheres poderosas: Nathalie, Ayo e Sara
No fim-de-semana intenso do 10.º Kriol Jazz, na Cidade da Praia, foram as vozes de três mulheres a gravar esta edição na memória: Nathalie Natiembé, Ayo e Sara Tavares. Três exemplos de independência, ética e verdade.
Chamam-lhe “punkette da maloya”. Porque entre os intérpretes dessa música tradicional da ilha Reunião, historicamente de resistência à escravatura sob a qual vivia grande parte da população mas também associada a movimentos independentistas, Nathalie Natiembé é uma figura rara. Vemo-la em palco e cada palavra que lhe sai da boca parece levar fogo.
Naquela voz rouca hipnotizante, os versos são ditos com a mesma crueza aguçada que reconhecemos em Patti Smith ou Brigitte Fontaine. E é tão impositiva a forma como essas palavras ferventes são atiradas contra o microfone – como se lhe queimassem primeiro o peito e depois a língua, tendo de as expulsar de dentro de si – que tudo o resto parece irrelevante. Ou seja, a qualidade da banda da cantora de Reunião mede-se pela capacidade de se desviar do caminho e tocar o menos possível. De certa forma, quase seria indiferente a música proposta em fundo, dada a esmagadora forma como a voz de Nathalie Natiembé carrega e concentra em si uma espécie de verdade total.
A música maloya é, na sua essência, uma canção de liberdade. E é a essa essência que Nathalie Natiembé se mantém fiel. É a isso que assistimos, de um modo desconcertante, no palco do Kriol Jazz. O desconcertante acontece pela total ausência de encenação do desfiar de canções diante do público da Cidade da Praia, mas em que o vaivém da cantora – a cada frase, recua dois passos, afasta-se do microfone, e sempre que volta a aproximar-se é como se nos atirasse com mais um pedaço de uma verdade quase insuportavelmente bela e devastadora.
“Afirmo muitas vezes a música maloya como um espaço de liberdade”, confirma Natiembé ao PÚBLICO minutos depois de deixar o palco. “Por isso devo poder tomar os caminhos que quiser. Sou livre. Talvez não respeite os códigos, mas paciência”, ri-se. Há boas razões para a cantora falar desta forma desassombrada sobre a sua música e as reacções mais ou menos apaixonadas que pode gerar. No início da sua carreira, a sua voz fez-se acompanhar primeiro apenas por um triângulo, depois também por uma percussão mais alargada. Mas essa via menos herética para os defensores da tradição maloya não havia de prolongar-se por muito tempo.
“Escrevi em tempos uma canção em que digo que é complicado quando o corpo vive aprisionado”, diz Nathalie. “E eu não tenho qualquer vontade de viver aprisionada dentro do meu próprio corpo. Chego, canto as minhas canções e as pessoas que pensem o que quiserem.” E ela já está habituada a ter de se esquivar aos disparos de vozes mais conservadoras que lidam mal com a sua perspectiva ampla de uma música mayola que, no seu entender, “é também a língua e aquilo que fazemos com ela”.
Aquilo que Nathalie faz com a língua é uma evidência em palco. É deixar que a língua lhe carregue as histórias, tal como aprendeu a escutar nos músicos francófonos como Jacques Brel, Léo Ferré ou Serge Reggiani. No fundo, são as histórias, sugere, a valer-lhe a postura de palco responsável pela designação “punkette da maloya”. “E isso deve-se a contar as minhas histórias; não conto as dos outros”, sublinha. No caso do álbum mais recente, Bonbon Zetwal (2013), as suas histórias concentram-se em torno da perda dos dois pais no espaço de alguns meses.
“Quando se é criança, mas mesmo em adulto, com 50 anos, tendemos a acreditar que os nossos pais são eternos”, lembra. “Até então, em 2011, a morte era algo virtual para mim, não tinha uma forma muito real na minha cabeça.” Desconfiada de músicos que se colocam numa posição de conforto emocional, não arriscando o pescoço em cada canção, Nathalie Natiembé canta, por isso, como forma de sobrevivência – não da ordem física ou financeira, mas da ordem moral, afectiva, emocional. E, caramba, como ela sobrevive!
A chuva de Sara
Depois de um arranque do 10.º Krioll Jazz marcado pela espantosa vitalidade dos cabo-verdianos Bulimundo, as duas noites de programação mais intensa do festival, sexta e sábado passados, haviam de conquistar sobretudo pelas presenças femininas – a Nathalie Natiembé juntar-se-iam concertos exemplares de Ayo e de Sara Tavares –, mas encarregar-se-iam também de nos provar o quanto Seu Jorge tem vindo a desbaratar com admirável persistência a inventiva reinvenção da tradição brasileira que explorou em Samba Esporte Fino e Cru. Um fenómeno em Cabo Verde, graças às suas canções que povoam o universo das telenovelas, este Seu Jorge dos álbuns Música para Churrasco tornou-se precisamente o que esses álbuns denunciam logo no título: a música parece ter passado a servir um propósito funcional. E Seu Jorge percebeu que preferia ser entertainer a ser artista. Uma pena. Mas uma pena de comprovada eficácia junto de multidões.
Em sentido contrário, a passagem pelo Kriol do cabo-verdiano Mário Lúcio deixou claro que a vida de palco de Funanight continua a gozar também de uma enorme popularidade, mas sem com isso precisar de abastardar a sua história. Mário Lúcio tanto se chega ao funaná tradicional, como o cruza com heavy metal ou toques de um jazz subtil e elegante, troca correspondência com o tropicalismo, deixa deflagrar explosões de energia latina desbragada vendidas em segunda mão de Manu Chao e homenageia figuras como Katchas e Zeca di nha Reinalda, o cantor dos Bulimundo que se lhe juntou em palco. Mário Lúcio fala da importância de deixar as crianças brincar, fazendo pairar nessa imagem toda uma lição sobre as prioridades que deviam estar no topo das preocupações da humanidade (e nessa simples imagem dizer já tanto sobre conflitos armados, posições sobre imigração e tudo o mais), permitindo que a sua música se funde nessa perspectiva humanista e de partilha que invade todo o seu discurso.
Ayo não anda muito longe disto. A prédica que lhe ouvimos em palco é de quem defende o “amor como única resposta” para as enfermidades do mundo. E é isso também que se descobre na sua música. Apesar de alguns espasmos de energia mais inquieta e de umas episódicas incursões por guitarras acústicas ansiosas (conforme prescritas por Ani DiFranco), as canções da cantora alemã de ascendência nigeriana são percorridas sempre num registo de suavidade soul, ou até pop. Do início ao fim, das citações dos franceses Phoenix à versão de Petit pays (popularizado por Cesária Évora), a música de Ayo – palavra yoruba que significa alegria –, assim como a de Mário Lúcio, tem essa capacidade de projectar felicidade. São, todas elas, canções que tentam ir ao encontro dos outros e celebrar esse facto. Uma e outra vez.
Para Sara Tavares, tratou-se de mais um caloroso reencontro com as suas raízes. Numa opção de risco, a cantora baseou a actuação no novo disco, Fitxadu – quando podia ter-se valido de um best of mais fácil de passar para uma multidão. Mas se Sara não se atemorizou, pois o público também não lhe ficou atrás e seguiu-a pelas suas excelentes interpretações de uma identidade expansiva que lhe fica bem. Depois de a soul ter cedido o primeiro plano às raízes africanas, Sara voltou a equilibrar essas referências, juntou-lhe elementos electrónicos mais típicos do trip-hop e criou numa nova vida para si. Sem necessidade de fazer escolhas claras entre ser discípula de Whitney Houston, filha da morna cabo-verdiana ou cantora pop.
Há ano e meio que não chove na Cidade da Praia. Na noite de sábado chuviscou um pouco durante o concerto de Sara Tavares. Não conta como chuva, mas é o suficiente para vir à cabeça o quanto se é abençoado quando num par de noites se tem a sorte de escutar Sara Tavares, Ayo e Nathalie Natiembé quase de enfiada.
O PÚBLICO viajou a convite do AME e do Kriol Jazz