Depois das rosas, é tempo de poetas para Janita Salomé
Se em 2014 o mote foi Em Nome da Rosa, agora Janita Salomé celebra a poesia e de caminho escreve uma carta à Dona Europa. Com arranjos de Filipe Raposo e Mário Delgado, Valsa dos Poetas chega hoje às lojas.
Num momento em que a poesia vai ganhando terreno na edição discográfica, em palavras ditas ou na sua relação com a música, Janita Salomé dá corpo a um projecto antigo: um disco onde a primazia é dada à palavra. Valsa dos Poetas é, depois de Em Nome da Rosa (2014) e Vinho dos Amantes (2007), uma experiência onde o cantor se vê deslocado do seu habitual território (o cante alentejano, as influências mouriscas) para mergulhar num universo moldado pela estética e o gosto de dois arranjadores de peso, o pianista Filipe Raposo e o guitarrista Mário Delgado. O resultado prima pela ousadia, mesmo quando se estranha, e se há algo onde o acerto é mais equívoco é quando palavras e música parecem caminhar desencontrados (caso de A música inventa o lume, de Jaime Rocha), surgindo mais como poesia dita sobre música, ainda que cantada, do que como canção. Mas isso não tira ao disco o mérito essencial de enfrentar a poesia para engrandecê-la.“Sempre fui sensível ao relevo da palavra, e quem melhor do que os poetas para o fazer?”, diz Janita ao Ípsilon. “Eu arrisco fazer uns versos, mas não chamo àquilo poesia.” O que aqui se ouve são poetas invocados (Sophia e Bocage, em versos de José Jorge Letria), a par de outros cuja obra serve de base às composições: Luís de Camões, Jaime Rocha, Luís Andrade (Pignatelli), Carlos Mota de Oliveira, José Afonso, Maria Manuela Espinho, mas também Ibn Amar ou Charles Bukovski. Os cantados, porque no livreto do disco Janita inscreve outros nomes que o inspiram: Camilo Pessanha, Baudelaire, Fernando Pessoa, Herberto Helder, António Lobo Antunes, Hélia Correia, Anacreonte, Manuel Alegre, António Menano, António Patrício, Ibn Sara, Al’Mutamid, Hipólito Clemente.
Poesia em dois tons
O disco abre precisamente com Sophia e Bocage nas palavras de Letria, e logo aqui se encontram duas leituras musicais, a de Filipe na primeira, com predomínio do piano e tons jazzísticos, sincopados; e a de Mário Delgado na segunda, com uma estrutura pulsante à base de percussão e guitarras. São, ambas, um desafio para a voz de Janita. “Eu já tinha musicado antes a Sophia. E o José Jorge Letria tinha-me dado estes poemas há muito tempo. Guardei-os para uma oportunidade, e ela surgiu agora.” Exceptuando os casos das canções regravadas (como Não é fácil o amor ou Era um redondo vocábulo, de José Afonso, que Janita cantara com o seu irmão Vitorino no disco Utopia, de 2004), as restantes nasceram de um mesmo método. “O elemento responsável é a palavra, a palavra do poeta, que nos transporta para outra visão da existência, e essa é a virtude que tem a poesia. E isso reflecte-se na música.” Música que se “veste” consoante os arranjadores: “No Filipe, há tons mais quentes e carregados; no Mário, é como uma flor aberta.”
Cantar Bukovski foi outro desafio. E Janita transfigura a sua voz, torna-a pesada, para soar como ele em Bluebird. “Era um irreverente. Insatisfeito com o tempo em que vivia, com o conservadorismo e o puritanismo.” Insatisfeito era também Luís de Camões, do qual Janita musicou a canta Aquela triste e leda madrugada. Ele explica o que o atraiu: “Camões, ao que parece, teve uma grande paixão pela irmã do rei D. João III, e este poema tê-lo-á escrito quando se despediu dela, às escondidas, sob pena de ser mandado executar pelo rei. Foi neste poema que Manuel Alegre se inspirou para escrever E alegre se fez triste [“Aquela clara madrugada que/ viu lágrimas correrem no teu rosto”].”
Depois vem A música inventa o lume, de Jaime Rocha (do livro Lâmina, de 2014): “Fui folhear o livro e fiquei preso nesse poema lindíssimo. E como é poesia que não foi escrita para ser musicada, a melodia sai muito da norma, foi como se estivesse a ler o poema.” E tem a voz de Luanda Cozetti por convidada. “Uma grande cantora e grande amiga, estava prometido que havíamos de emparceirar e aconteceu agora.” Em seguida, Janita canta Aos meus poetas, onde diz (a letra é dele): “Dos meus poetas/ recebo a alma/ em cada palavra.” Convidou outra voz feminina, a da soprano Catarina Molder, num dueto que é mais uma “competição” de dois campos paralelos. “Ela tinha aquele programa na RTP 2, Super Diva, com experiências da música clássica com outros géneros musicais, um dia lembrou-se de cruzar o cante alentejano com clássica e eu consegui, nem sei bem como, transpor o Eugene Onegin de Tchaikovsky para cantá-lo à alentejana, com o grupo de Cantadores do Redondo.” Aqui, Catarina ajustou a sua tessitura. “Foi ela que se adaptou, e bem, porque tem uma extensão vocal que lhe permite um desempenho brilhante.”
Carta à Europa rica
Não é fácil o amor, regravação de um poema de Pignatelli que se transformou numa bela canção de Janita, abre caminho à segunda letra do cantor, Vozes do Sul / Carta à Sra. D.ª Europa: “É uma maneira suave e elegante de manifestar descontentamento com o que se passa na Europa, rica mas com muitos pobres. Porque tudo poderia ser diferente. Nunca se foi tão rico de bens materiais, embora bens de outra ordem sejam postos em causa.”
Antes do Redondo vocábulo de José Afonso ouve-se De algum amigo, de Carlos Mota de Oliveira. “É um poeta do Andaluz que ficou por aí perdido, conhecemo-nos desde miúdos. Faz lembrar o Omar Kayan, aqui e além.” A fechar, a presença árabe: Aghmat, com poema de Maria Manuela Espinho; e A Al’Mutamid, do poeta Ibn Amar: “Isso não transparece do poema, mas é dramático, é um pedido de clemência feito de uma forma poética, porque o Ibn Amar (como o rei Al’Mutamid) também era um grande poeta.”
Dia 5 de Junho, em Lisboa, Valsa dos Poetas vai ser apresentado ao vivo no Teatro da Trindade. E com Janita Salomé estarão todos os músicos que participaram no disco.