Três gerações de hemofílicos em campanha contra as hemorragias
Frederico, Nuno e Carlos, com 17, 45 e 63 anos, representam três gerações de hemofílicos. Juntaram-se para uma campanha que foi lançada a propósito do Dia Mundial da Hemofilia, que se assinala nesta terça-feira.
O andar arrastado de Carlos Maria é um dos resultados de anos de hemorragias nas articulações, que hoje lhe martirizam os joelhos e os pés. Aos 63 anos, nunca se conheceu sem hemofilia. Foi diagnosticado à nascença, quando levou uma vacina e fez um hematoma maior do que seria de esperar. Quando lhe analisaram o sangue descobriram que tinha menos de 1% de factor VIII (uma pessoa saudável tem cerca de 80%) — sinal de hemofilia tipo A grave. Em plena década de 1950, não lhe deram mais do que década e meia de vida. “Os próprios médicos não sabiam bem o que era a hemofilia”, recorda.
Por causa da facilidade com que faz hemorragias “não podia jogar à bola” e sabia-o. Mesmo assim, arriscava. “Ainda hoje sofro esses problemas graves a nível articular nos pés e nos joelhos.”
Carlos Maria reformou-se das Finanças, por invalidez, aos 50 anos, a conselho dos médicos. Mas faz questão de dizer que mantém a sua independência. “Tenho uma vida completamente normal em comparação com uma pessoa que não tenha hemofilia.” Há apenas cuidados-extra a ter para evitar as hemorragias, explica. “Tenho de ver onde ponho os pés, estar atento aos declives da calçada” e ao atravessar a rua. Também tem de estar atento para não bater com a cabeça em lado nenhum, uma vez que os problemas que podem resultar de um “acidente” desse tipo “são muito graves” por causa das possíveis perdas de sangue.
A hemofilia é uma doença rara que se caracteriza por uma deficiência no processo de coagulação do sangue. Pode ser hereditária ou resultar de uma mutação genética espontânea que afecta mais os homens do que as mulheres.
Nos últimos anos, “houve uma evolução tremenda em termos de terapêutica”. “Nos anos 1950 e 60 faziam-se transfusões de sangue total quando havia hemorragias”, explica Paula Kjöllerström, pediatra na unidade de hematologia do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa.
Se para Carlos os tratamentos disponíveis consistiam, pelo menos no início, em transfusões de sangue, para Nuno Lopes, de 45 anos, e um dos membros da direcção da Associação Portuguesa de Hemofilias e outras Coagulopatias Congénitas (APH), já não foi assim.
“Nas décadas de 1970 e 80, os ‘medicamentos’ a que eu tinha acesso eram sacos de gelo e cama”, recorda Nuno. No final dos anos 80 conta que começou a fazer os crioprecipitados — uma parte do plasma mais rica no factor em falta —, depois passou para os hemoderivados (produtos derivados do sangue humano), e há 12 anos que faz o tratamento recombinante — um concentrado de factor preparado pela tecnologia recombinante. Posto tudo isto, o “que sabemos que aí vem é ficção científica tornada realidade”.
Mais recentemente, prossegue a médica, “têm aparecido novos produtos que têm uma maior semivida”. Significa que “têm mais duração na circulação no sangue”.
Mas a “grande novidade, que apareceu no último ano, é o emicizumab”, um produto de administração subcutânea que estará disponível “a curto prazo” nos hospitais portugueses, diz Paula Kjöllerström. Este novo medicamento, “utiliza uma molécula que não é factor VIII mas liga-se [aos outros factores de coagulação] da mesma maneira”. Além disso, tem um período de duração no sangue maior. A inovação destina-se, neste momento, aos doentes com hemofilia A que são “muito difíceis de tratar, porque têm anticorpos contra o factor VIII — são os chamados doentes com inibidores”.
A Roche, farmacêutica responsável pelo produto, já obteve autorização de introdução no mercado. O Infarmed diz ao PÚBLICO que está a “decorrer a avaliação farmacoterapêutica e farmacoeconómica e só após estas avaliações é que estará disponível no Serviço Nacional de Saúde”. A farmacêutica adianta ainda que “foi solicitado” um programa de acesso precoce (PAP) ao medicamento, submetido para aprovação do Infarmed. Entretanto, “já está disponível através de um ensaio clínico” para alguns doentes.
Hemorragias Zero
Frederico Cardoso, de 17 anos, não se recordará de nenhuma destas transformações na forma como os hemofílicos são tratados.
O jovem, que administra a si próprio a medicação por via endovenosa desde os 13 anos — algo que, diz, garante a sua “independência” —, conta que não se preocupa muito com a doença. Tem noção dos seus limites e mais atenção quando “o factor não está em dia”.
Quando vai a encontros de hemofílicos diz que repara nas limitações dos mais velhos. “Nós [os jovens] não temos problema nenhum.”
Num “ano bom”, Frederico tem duas hemorragias. Nuno já passou ano e meio sem uma. Carlos já lhes perdeu a conta. “O cuidado principal para não ter hemorragias é fazer a profilaxia nos dias certos”, diz Nuno Lopes.
Paula Kjöllerström garante que já há crianças com muito poucas ou nenhumas hemorragias por ano. Normalmente até são “miúdos mais activos, que cumprem a profilaxia de forma muito certa e a fazem de manhã, ou muito próximo da actividade desportiva, para terem um valor máximo de factor nessa hora”.
“Os adolescentes que nós seguimos neste momento fazem educação física como os outros miúdos e muitos deles fazem outros desportos”, explica. A única coisa que pedem é que estes jovens “evitem os desportos com muito risco de traumatismo craniano, como o râguebi ou o boxe”.
Para assinalar o Dia Mundial da Hemofilia, que se celebra esta terça-feira, Frederico, Nuno e Carlos juntaram-se há dias em Lisboa para participar no vídeo de lançamento da campanha Hemorragias Zero. A iniciativa é da APH. E foi tornada pública nesta segunda-feira.
A ideia é sensibilizar a comunidade, através de palestras, workshops e outras actividades, para a possibilidade de os hemofílicos viverem sem hemorragias.
No âmbito desta campanha, será realizado um inquérito dirigido às pessoas com hemofilia, cuidadores e profissionais de saúde, de modo a conseguir obter um conhecimento mais aprofundado sobre a doença em Portugal.
Nuno Lopes, da direcção da APH, frisa que esta é uma campanha essencialmente virada para a comunidade hemofílica. “Hoje em dia, já é possível alcançar esse objectivo” das zero hemorragias, mas “obviamente que isto implica a profilaxia e um regime bastante disciplinado”.
Não ter hemorragias, prossegue, pressupõe adesão à terapêutica e uma gestão adequada da mesma, nomeadamente através da personalização do tratamento — recorrendo à profilaxia feita com base no estudo farmacocinético individual, que ajuda a perceber quais as horas mais indicadas para a administração do factor em falta.
“Às vezes, há uma fraca adesão ao regime profiláctico”, diz Nuno Lopes — são doentes mais velhos que “não aprenderam a fazer a auto-administração, dizem que não têm boas veias” ou referem ter medo de desenvolver inibidores aos factores, “apesar de não existir nenhum estudo que o comprove”. Noutros casos, verifica-se uma adesão não muito disciplinada.
“Nós temos hipótese de ter uma vida absolutamente normal e activa, o que também é bom para a sociedade”, defende Nuno Lopes. “[Para promover a independência das crianças] tentamos que a partir dos dez anos algumas comecem a fazer auto-infusão”, ou seja, administrar o factor a si próprias, explica a pediatra. “O mais importante é elas perceberem que podem fazer o que os outros fazem, mas têm de ser responsáveis.”