A morte de Marielle Franco veio da Brasilândia para interpelar a elite
Cinco performances de longa duração, que podem durar entre oito e 11 horas, instalam-se até domingo na feira de arte de São Paulo. Aqui, a favela também faz perguntas.
“Morte, morte, morte, morte, morte…”. “O mundo branco roubou o meu cabelo”. “Favela vive!”. “A elite treme!!!”. No segundo dia da SP-Arte, a feira de arte de São Paulo, o espaço da performance, que este ano tem um recinto especial, estava bem mais animado. Na sala de 200 metros quadrados, as paredes já transformadas num mural colectivo com sabor a street art, desapareceu a sensação da véspera de que prender a performance num extremo do edifício desenhado por Oscar Niemeyer poderia ter sido uma má ideia.
“Hoje isto é sobre a periferia”, diz Kelton, 21 anos, que pertence ao colectivo Brechó Replay, um dos cinco projectos de performance seleccionados para esta 14.ª SP-Arte, que junta até domingo 130 galerias brasileiras e internacionais. Parece um extraterrestre com a pele coberta por argila verde, as unhas de uma mão pintadas de verniz vermelho e um corpo andrógino cuja magreza é sublinhada por um fato de treino. Questiona todas as identidades, mas nós não temos a certeza de saber quais são. “A gente reivindica a monstruosidade e traz essa monstruosidade como acto de questionamento.”
Como Kelton se apresenta verde, temos de lhe perguntar se isso também é um questionamento sobre o facto de o mundo branco lhe ter roubado a cor da pele e o cabelo crespo. “Por conta de ser de cor, light skin, não consigo sair da periferia. Não é possível encontrar quem vem de lá nos espaços culturais, nos espaços da cultura.” A periferia de Kelton e de vários outros “periféricos” que vieram com ele é a Brasilândia, uma favela da Zona Norte de São Paulo, com quase 300 mil habitantes.
Kelton explica que a pintura que fez numa das paredes, uma cena cristológica, é um relato do que realmente aconteceu naquele espaço. Ele rapou o cabelo, supostamente afro, mas não conseguirá sair da periferia porque é identificado pelos traços africanos. “Ser negro não é só uma questão de cor da pele.”
Sob a influência de Abramovic
O colectivo Brechó Replay tem o nome mais adequado para o formato que este ano a performance assume na SP-Arte, uma actuação non-stop, desde que a feira abre até que fecha, com durações que no dia da abertura chegaram às 11 horas seguidas.
Quando a directora da feira, Fernanda Feitosa, convidou Paula Garcia para ser curadora do sector, já todos sabiam ao que vinha. “Eu tenho uma pesquisa e uma prática ligada à performance de longa duração”, explica ao PÚBLICO no primeiro dia da feira, com o público ainda a espreitar um pouco de longe.
Discípula de Marina Abramovic, com quem trabalha em Nova Iorque, Paula Garcia escolheu cinco grupos de performers para actuarem em simultâneo: “Quis que estes projectos independentes coabitassem no mesmo espaço para se afectarem uns aos outros através da energia, do cheiro ou do humor. Queria que o público se misturasse com o seu trabalho e não o contrário.” A curadora quer evitar que os performers sejam vistos “como os pipoqueiros da festa”, com actuações espalhadas pelo recinto numa interacção que acaba por ser mais com a confusão da feira do que com o público a que se destina.
A julgar pelas gigantes letras brancas que anunciam sobre uma parede vermelha o novo espaço reservado à performance, esta prática artística parece ter ganho relevância na SP-Arte deste ano. Tal como os sectores com curadorias especiais de artes plásticas, como o Solo ou o Reportório, o espaço da performance está devidamente assinalado no mapa da feira por uma mancha generosa. Mas, para a directora da feira, não são esses 200 metros quadrados que dão à performance mais importância este ano. “Não é uma questão de ser mais ou menos importante, o conceito aqui é diferente. A curadora só queria ter cinco trabalhos e que todos estivessem a trabalhar juntos num espaço delimitado. Nas edições anteriores, já houve muitos formatos.”
É na performance de um também chef de cozinha, Gabriel Vidolin, que encontramos as referências mais directas a Abramovic, e nomeadamente a trabalhos como The Artist is Present, apresentado no MoMA ao longo de três meses – uma performance em que a artista se mantinha silenciosa, sentada a uma mesa a que o visitante podia juntar-se. Atrás do chef-artista, estão várias frases com instruções em letras impressas: “Sente-se”, “Não converse comigo”, “Olhe nos meus olhos”, “Conte-me o que quiser”. Conforme o monólogo que estabelecemos com ele, Gabriel Vidolin constrói um prato para comermos, usando os alimentos que estão mesmo ali, como belos cachos de uvas ou frutos secos.
Colado ao canto do chefe está o duo Protovoulia (Jéssica Goes e Rafael Abdalla). A dupla, explica Paula Garcia, trabalha com “disparadores”, “activadores”: terra preta, carvão ou argila que vão manipulando numa acção que parece um trabalho de Sísifo. Paulo Setúbal também explora os limites do corpo, tentando mover através de cabos uma peça suspensa de Franz Weissmann com cerca de 300 quilos. Finalmente, a designer de moda Karita Giroto ensina-nos que todos os corpos que andam na rua estão em performance, “mexem com a sensibilidade do outro”, sublinhando que as diferenças não devem ser apagadas.
Durante a feira, os grupos vão criando um reportório, que retomam de um dia para o outro, como as palavras de ordem do colectivo Brechó Replay que no segundo dia chegam aos quatro cantos da sala. “Os Brechó Replay trazem uma coisa muito sofisticada porque não estão inventando um problema, da negritude às questões de género. Eles só querem entrar no sistema.”
Em toda aquela “morte”, escrita várias dezenas de vezes, está “com certeza” o recente assassinato da vereadora negra, socióloga e militante feminista, do Rio de Janeiro, segundo a curadora Paula Garcia. “A questão da Marielle Franco para mim foi muito forte, porque ela representava algo de novo. Tinha a capacidade de se tornar uma potência na política e quem sabe virar Presidente da República. É por isso que a mataram.”
Os verdadeiros trabalhos de Marina Abramovic, podemos encontrá-los na galeria Luciana Brito. Para "usarmos" Waiting Room, basta escolhermos uma das mesas e a respectiva cadeira, sentarmo-nos, e pormo-nos a olhar para uma parede com uma rocha de permeio. Todo o corpo é performance.
O PÚBLICO viajou a convite da SP-Arte