“Quem sabe se teremos uma ‘geringonça’ brasileira?”
Construir uma nova aliança, com Lula ou para além de Lula, é o novo desafio da esquerda brasileira. O Partido dos Trabalhadores procura novos aliados e inspiração em Portugal.
A “geringonça” portuguesa pode ser inspiração para a nova frente de esquerda que o Partido dos Trabalhadores (PT) tem de construir no Brasil — para as eleições de Outubro —, e para construir um novo programa que reconquiste os eleitores, disse Tarso Genro, ex-ministro de Lula da Silva, que esteve em Lisboa para a sessão pública Em Defesa da Democracia Brasileira, na quinta-feira à noite. “O campo político que eu integro conhece a experiência da ‘gerigonça’ aqui em Portugal, que revela um exemplo de arte política extremamente interessante. Fez-se uma unidade no campo da esquerda, bloqueando as brutalidades do projecto neoliberal para que Portugal encaminhe o seu destino económico como democracia social. Na minha opinião é adaptável a outros países”, afirmou, numa entrevista conjunta com Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e pré-candidato pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Para Boulos, a urgência é criar uma frente de defesa da democracia no Brasil.
A estratégia da esquerda brasileira para eleições de Outubro é de conquista do poder ou de resistência?
T.G. — No Brasil há duas tarefas essenciais para o centro-esquerda. A primeira é construir um ambiente político de unidade, para defender a democracia e um novo modelo de desenvolvimento económico. A segunda, como símbolo da recuperação republicana e democrática do Brasil, é defender o presidente Lula, que hoje é um preso político, alvo de um processo de excepção, distorcido pelo poder judicial.
G.B. — Nessas eleições a esquerda vai ter de saber combinar unidade com a apresentação de um projecto novo para a sociedade brasileira.
Foi uma ampla aliança de esquerda que conseguiu levar Lula à presidência. Há alguma hipótese de a reeditar?
G.B. — É necessária uma frente de defesa da democracia. Uma frente não apenas de partidos, mas também de intelectuais, artistas, juristas, movimentos sociais, enfim, uma frente da sociedade civil para defender o que resta de democracia no Brasil, perante ameaças que vêm dos militares, de sectores fascistas, que estimulam a violência política, ameaças que vêm do próprio sistema judicial. Agora a unidade da esquerda tem de ser em torno de um programa. O que temos por ora é uma unidade num momento muito grave em que a maior liderança social do país está presa, começa a haver assassinatos políticos como o alarmante e bárbaro caso de Marielle Franco e o ambiente democrático está profundamente envenenado.
T.G. — Mas temos de renovar o conceito de frente, porque sempre tiveram como pivô o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, de Michel Temer), tido como um partido centrista. Mas o PMDB é que fez o golpe e a agenda contra-reformista do Governo Temer. Temos de pensar num programa que tenha no centro os partidos de esquerda. As formações de esquerda mais nítidas hoje no Brasil são o PT, o Partido Socialista Brasileiro, o PSOL e o Partido Comunista do Brasil.
E como fazer esse projecto novo da esquerda?
T.G. — Temos de olhar o passado, ver os erros e os acertos dos governos do Lula e Dilma, e a partir disso mirar o futuro. Também cometemos alguns erros políticos e económicos. O novo modelo deve ter três grandes características: a renovação da participação popular na gestão pública do Estado, fundamental para regenerar a democracia; segundo, pensar numa integração na economia global que seja ao mesmo tempo cooperativa e soberana, e não submissa, como hoje, ao capital financeiro; e, terceiro, recuperar e dar densidade nova às instituições republicanas do Brasil, profundamente desgastadas com o processo contra Lula e o posicionamento político do poder judicial em defesa das reformas neoliberais.
G.B. — Qualquer projecto de desenvolvimento para o Brasil vai ter de rever o que foi feito nos dois anos de governo ilegítimo. Defendemos um referendo para que o povo possa decidir se quer manter ou revogar as medidas do Governo de Temer, como a reforma trabalhista, entrega dos recursos naturais a empresas estrangeiras... Como a Emenda constitucional 95, que congela investimentos sociais durante os próximos 20 anos. É uma anomalia, em termos internacionais. Nenhum país do mundo fez uma tragédia como essa.
Mas para conseguir recuperar uma aliança larga como tinha o PT, não será preciso fazer um mea culpa por causa da corrupção?
T.G. — A imagem que foi formada no Brasil, a partir do controlo duro que a direita brasileira e o neoliberalismo exerce sobre os media, é que a corrupção começou com PT. Isto é uma fraude informativa. É claro que pessoas e grupos do PT se envolveram em situações ilegais. Mas mesmo durante os governos Lula e Dilma a ampla maioria das pessoas que se envolveram em corrupção não são do PT. Então, o que temos de fazer é um mea culpa do sistema político brasileiro deformado, oligárquico, antidemocrático, e fazer uma profunda reforma política e eleitoral, para que possamos ter uma democracia autêntica, e que o combate à corrupção não seja uma campanha de media, como hoje.
E há condições para fazer essa reforma?
T.G. — Hoje não há condições. O que flui da opinião pública manipulada do Brasil é que passamos de um Estado de corrupção para um Estado sem corrupção. Isso é uma mentira.
G.B. — O Governo actual, fruto de um golpe parlamentar, configura-se como um dos mais corruptos da história do Brasil. Todos nós defendemos o combate à corrupção. Para casos comprovados, com devido processo legal, tem de haver punição. Não podemos é acreditar que o combate à corrupção se faz apenas com operações policiais. É preciso reverter o sistema político que induz e reproduz a corrupção. Em Itália, a Operação Mãos Limpas botou na cadeia dezenas de políticos corruptos. Mas a corrupção acabou por causa disso? Logo depois veio Berlusconi, um dos governos mais devassos na história italiana. Temos de mexer na estrutura. Os paladinos do combate à corrupção não têm mostrado nenhuma preocupação em alterar a estrutura do sistema político brasileiro...
Não foram feitas grandes alterações no financiamento dos partidos e das campanhas após a Lava-Jato?
T.G. — Não substanciais. Pelo contrário, hoje os candidatos mais ricos têm mais oportunidade de se autofinanciarem.
G.B. — Já não se pode financiar a campanha enquanto empresa, mas o empresário pode financiar enquanto indivíduo.
Em termos mais simples, as grandes empreiteiras deixam de poder financiar os partidos...
G.B. — ... Mas o empreiteiro pode fazê-lo. Pessoas reais. A forma como os interesses económicos sequestram o poder público no sistema actual permanece. Mantém-se a lógica da corrupção no Brasil: as campanhas são financiadas por grandes interesses económicos — que não é um financiamento, é um investimento.