Nas mãos da câmara, o prédio da Livraria Fumaça esboroa-se

Esta é uma história de resistência de quem se recusa a deixar morrer uma loja que há mais de meio século vende livros, “raridades” às portas da Avenida da Liberdade. O prédio que lhe serve de casa está praticamente em ruínas porque o proprietário, a câmara de Lisboa, nunca fez ali obras, queixa-se o alfarrabista que dá nome ao negócio.

Fotogaleria
António Abreu Fumaça abriu este espaço na Rua da Alegria há 53 anos Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha

Os olhos azuis de António Abreu Fumaça, de 85 anos, arregalam-se quando começa a falar dos livros e do gosto que lhes ganhou mal começou como ajudante de livreiro e que se mantém há mais de sete décadas. Nasceu no Bombarral, fez um curso de comercial que lhe deu a quarta classe. Começou a gostar dos livros, assim que começou como ajudante de livreiro, aos 14 anos, na Moreira & Almeida, da rua Anchieta, no Chiado, onde de empregado se fez patrão. Anos depois, acabaria por trespassar o negócio e mudar-se para a rua de São José para abrir uma casa nova com a mulher e que lhe levou também o nome: Livraria Fumaça. 

Há 53 anos, começou a levar alguns livros para um prédio, no número 12 da rua da Alegria, e para onde, há mais ou menos três décadas, acabaria por mudar a Fumaça. Mais de meio século depois, esta casa de papel está em ruínas e a desfazer-se a cada dia. As paredes continuam forradas a livros que o tempo tratou de amarelecer, e que suportam hoje placas dos tectos para que não caia mais nenhum bocado ao chão.

António Fumaça está envolvido numa disputa jurídica com a câmara de Lisboa, que é a sua senhoria desde que assumiu a gestão do Parque Mayer - o edifício fica nas traseiras - e que acusa “de ter pintado as paredes por fora”, enquanto a casa lhe cai aos bocados. 

Segundo o que António explicou ao PÚBLICO, as condições daquele prédio e dos vizinhos, agravaram-se depois de a câmara de Lisboa ter assumido a gestão do complexo de teatro de revista, já que aquele conjunto de imóveis acabou por não ser reabilitado. Com o passar do tempo, sem obras de conservação, a chuva foi entrando. Já se perderam livros, os tectos, paredes e chão apodreceram.

Segundo recorda o alfarrabista, havia um portão "lindo, de madeira, grande", na entrada, que “desapareceu” um dia, deixando o espaço sem segurança. Depois, disso, em 15 dias, diz que foi roubado sete vezes, tendo-lhe levado as colecções de selos, moedas e livros raros que queria deixar para os filhos. 

O imbróglio em que a autarquia e a Bragaparques, que era a proprietária do Parque Mayer, estiveram envolvidas na última década ainda hoje é notada quando se olha, quer para os terrenos do antigo complexo de teatro de revista, quer para os terrenos da antiga Feira Popular de Lisboa, onde ainda continua tudo por fazer.

Já em 2010, uma vistoria feita pelos serviços camarários confirmou “o mau estado de conservação do imóvel” e que por isso não se justificava a sua recuperação. Como tal, teria que abandonar o espaço ou então poderia optar por arrendar um espaço num prédio municipal. Não lhe agradando a ideia de sair do centro da cidade, assim como o aumento do preço de renda – face aos 62 euros que paga actualmente - optou por não sair e continua “à espera que a câmara faça obras no edifício” ou então lhe seja paga a “indemnização que é devida”, tendo levado o caso para os tribunais. 

“A câmara não faz obras a ninguém. Pinta as partes da frente e olhe para ali ... tudo a cair”, desabafa, lamentando as “dezenas” de telefonemas que fez para a câmara e que diz que nunca foram atendidos. O PÚBLICO tentou, sem sucesso, obter mais esclarecimentos junto da câmara de Lisboa. 

“Está péssimo o negócio”

O prédio devoluto passa despercebido a quem ali na rua. A entrada, suja por causa dos pombos, dá para um pátio. É preciso subir um lanço de escadas para se chegar à Livraria Fumaça. Hoje, António vive em Benfica, mas todos os dias apanha o autocarro para ir abrir a livraria. Abre pouco depois das 9h. Pára para almoço às 11h30 e depois reabre às 13h até às 15h. 

Nestes dias de chuva, há uma gincana montada no chão mal se entra, com bacias e garrafas cortadas que servem para recolher as pingas que vão caindo, e que faz com que circular pela livraria se torne um verdadeiro desafio.

Hoje, já poucos lhe batem à porta. Os clientes mais antigos foram desaparecendo e ali "não entram com medo que caia tudo em cima deles". "Está péssimo o negócio", desabafa o alfarrabista. Por ali, vai apenas aparecendo um ou outro estrangeiro, o que o levou a reorganizar os livros nas estantes por línguas: inglês, francês, alemão. "Às vezes aparece por aí algum casalinho e lá levam um livro. Mas é um livro de cinco ou dez euros", diz. "Mas há meses em que nem faço um tostão". 

Durante a conversa, vai mostrando o catálogo de Abril/2018 que ainda dactilografa na máquina de escrever e que vai enviar “para meia dúzia” de clientes. E onde anuncia, por exemplo, que 650 partituras de compositores como Chopin, Bach, Beethoven, se podem comprar por 1200 euros. 

Deixou de comprar livros "há muito". Naquelas estantes cheias de pó estão cerca de 20 mil livros, atira António, que está disposto a vendê-los a quem lhe der 15 mil euros.

Teve como clientes Mário Soares que se sentava à mesa com Salgado Zenha, com Manuel João Palma Carlos ou com Raul Rêgo, quando ainda tinha a loja no Chiado. “A questão livreira está toda no Bairro Alto, nesta zona. Vou para o Lumiar fazer o quê?".

Depois de mais de 70 anos dedicado aos livros, não é agora que António Fumaça tenciona desistir: "Só saio daqui se me vierem buscar. A mim e aos livros. E têm de me pagar". 

Sugerir correcção
Comentar