Uma canção de Leonard Cohen para pensar o amor

A nova criação do Teatro da Cidade, Que Boa Ideia, Virmos para as Montanhas, parte de Famous blue raincoat, de Leonard Cohen, para reflectir sobre o amor a partir de uma das suas mais conhecidas figuras: o triângulo. No CAL – Primeiros Sintomas, até 29 de Abril.

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Guilherme Gomes andava a questionar-se como seria construir um espectáculo a partir de uma canção quando voltou a escutar Famous blue raincoat – tema gravado por Leonard Cohen no magistral Songs of Love and Hate. Aquela letra, escrita sob a forma de carta enredada num triângulo amoroso que não se deixava ler de forma absolutamente clara, sempre tocara o actor. Mas ouvi-la naquele momento levou Guilherme a focar-se nesse “elemento dramático inspirador” de Cohen cantar uma carta que reflectia sobre o amor, colocando-se numa posição abnegada e descomprometida, dirigindo-se ao amante da sua mulher com palavras que avisavam: “If you ever come by here / for Jane or for me / Well,  your enemy is sleeping / and his woman his free”.

Foram estes versos, que fizeram nascer a desconfiança em Guilherme – “estará a mulher livre?, estará o inimigo a dormir?”, perguntou-se – e, por arrasto, o desejo de construir uma história para estas personagens. Por lhe parecer razoavelmente impossível que alguém pudesse usar de tanto altruísmo a ponto de afirmar que deixaria o seu lugar quente na cama em favor de outro, pôs-se a ler vários artigos sobre o amor, um amor que pudesse dispensar a atracção sexual, que pudesse equivaler a uma liberdade suprema e a um estado emocional de quase total desapego. “A partir daí”, diz Guilherme Gomes ao Ípsilon, “fui tentando reflectir sobre esse género de amor e, à medida que ia escrevendo o texto e dialogava com outros autores, desconfiava da honestidade desse sentimento, tentava perceber se era ou não sincero.”

De desconfiança em desconfiança, Guilherme foi-se aproximando de uma convicção pessoal de que “a carta do Cohen é uma carta que ele gostava que lhe tivessem escrito”. É, por assim dizer, “uma carta idealizada” – convicção talvez reforçada pela confissão do próprio Cohen, em entrevistas, de que “a famosa gabardina azul” atribuída ao amante na letra era, afinal, sua pertença.

Foi neste ponto, com os primeiros esboços em mãos, que Guilherme partilhou a sua ideia com os restantes membros do Teatro da Cidade – Bernardo Souto, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço – e começaram a testar as suas primeiras tentativas de escrever a partir de um triângulo amoroso que coloca em cena o cenário hipotético levantado pela canção de Cohen. Que Boa Ideia, Virmos para as Montanhas, em cena no CAL – Primeiros Sintomas, Lisboa, de 18 a 29 de Abril, praticamente tem início com a visita da amante (Guilherme inverteu a relação entre os géneros) à casa de um casal que tenta digerir e sobretudo ignorar esses traumas do passado. O texto dura enquanto dura essa mesma visita.

No momento de uma madrugada qualquer em que Isabel bate à porta, André e Leonor estão já em estado de alerta e foram já notificados por uma canção, via rádio, de que há uma tragédia à espera de se abater sobre eles. O rádio, de resto, debita apenas canções do passado, como se fosse impossível fugir à sua assombração. Fora do apartamento, uma tempestade faz crer que aquela casa é um lugar protegido. Mas talvez haja mais comunicação entre interior e exterior do que possa parecer; talvez nos diga que não há forma permanecer a salvo de quaisquer ameaças exteriores. Isabel (Rita Cabaço), o elemento desestabilizador, chega movida pela culpa, em dívida para com Leonor e lança os três num caminho a que Guilherme, citando António Damásio, chama homeostasia – “uma espécie de harmonia, mesmo que para isso tenham de passar por um episódio traumático e violento”.

Nascer de um novo dia

Em 1994, numa entrevista à BBC Radio, Leonard Cohen tentaria furtar-se, uma vez mais, a explicações minuciosas sobre o triângulo amoroso de Famous blue raincoat, alegando ter-se esquecido de quem eram as figuras reais que haviam inspirado a canção-carta. Em vez disso, confessaria ter sempre sentido a presença de um homem invisível que tentativa seduzir a mulher com quem estivesse envolvido em dado momento, fosse ele real ou imaginário. Em Que Boa Ideia, Virmos para as Montanhas, é Leonor (Nídia Roque) quem toma, de alguma forma, o lugar de Leonard Cohen. “Leonor é uma sonhadora”, descreve Guilherme Gomes, aqui autor e encenador. “Ela tem uma relação poética com a vida que vem da invenção; é alguém que se relaciona sempre criativamente com as suas circunstâncias. Até porque o ciúme talvez seja também um exercício de criatividade.” E exemplifica com alguém que vendo o braço de uma cadeira é capaz de desenhar a cadeira por inteiro – mesmo que seja a cadeira errada. “Quando não nos permitimos libertar desse fantasma”, acrescenta Nídia, “quer ele exista ou não, morremos, ficamos amarrados.”

Apesar de Cohen estar sugerido em permanência, Que Boa Ideia, Virmos para as Montanhas parte de uma situação inspirada no músico canadiano mas não desliza para terras da homenagem nem sequer embarca em citações espalhadas por todo o texto – por muito que, já depois de ter uma versão final, Guilherme tenha descoberto semelhanças flagrantes com alguns versos de temas como Suzanne. Os únicos vestígios directos, na verdade, encontram-se logo no início, sob a forma de citação de um poema que diz “Aqui tens os amantes, não têm nome”.

Nos segundos seguintes, no entanto, ouvimos o nome de Leonor formar-se com clareza na boca de André (Bernardo Souto). Como se o ambiente que o poema se propõe criar fosse, desde logo, boicotado. Como se a tal desconfiança em relação ao texto original de Cohen fosse passada de imediato para as mãos do público, convidando-o também a desconfiar daquilo a que vai assistir. Ainda assim, o Teatro da Cidade prefere que esta declaração incida antes sobre o carácter universal do texto – esta casa pode ser a de cada um de nós, estas janelas podem ser a fronteira para o exterior dos nossos mundos individuais. Até porque ao ler Fragmentos de Um Discurso Amoroso, de Roland Barthes, Guilherme foi mergulhando mais fundo nesta ideia de que o amor pode ser “um exercício de solidão”. Para Isabel, Leonor ou André existirem, diz, terão de fazer esse trajecto de individualização, de se pensarem a eles e não se deixarem manietar pela “ilusão de serem um só”.

Por isso, inspirado por um outro triângulo fundamental da cultura popular, o autor pensou ainda em Jules e Jim, filme imensamente belo de François Truffaut, para esboçar uma Isabel que surge como um anjo. Talvez para os salvar a todos uns dos outros ou de si mesmos. Mas seguramente como visita transformadora. Capaz de ferir de forma impiedosa cada uma das personagens, mas incapaz de lhes desferir um golpe letal. Quando a madrugada se extinguir e o sol nascer, há-de ser outro dia.

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