Como o regime sírio identificou, seguiu e matou jornalistas
Advogados da família de Marie Colvin, jornalista veterana morta na Síria em 2012, apresentaram milhares de documentos em tribunal que denunciam actividade do Governo de Assad durante o início do conflito.
No dia 22 de Fevereiro de 2012, Marie Colvin estava com outros jornalistas e opositores ao regime de Bashar al-Assad num edifício na cidade síria de Homs, que servia de redacção clandestina, quando os bombardeamentos começaram a aproximar-se. Uma chamada através do Skype feita na altura registou o barulho das explosões, das pessoas a fugir e um grito: “Ela está morta.” Mais tarde nesse dia, agentes de informação sírios festejaram e o militar que ordenou o ataque mostrou o seu contentamento: “Marie Colvin era uma cadela e agora está morta. Deixem os americanos ajudá-la agora.”
O registo da chamada e este relato fazem parte de milhares de documentos — que vão desde memorandos internos do regime sírio a testemunhos de desertores — que compõem o processo apresentado pelos advogados da família de Colvin, em 2016, num tribunal federal norte-americano contra o Governo de Damasco. Na segunda-feira, a juíza Amy Berman Jackson divulgou parte desta documentação.
Marie Colvin era uma jornalista norte-americana, veterana na cobertura de guerras, que trabalhava para o jornal britânico Sunday Times. Era conhecida pela forma aguerrida como trabalhava em cenários de guerra e pela pala negra que usava num dos olhos depois de ter sido atingida por estilhaços durante a guerra civil no Sri Lanka, em 2001.
Em 2012 estava na Síria a fazer a cobertura do início dos confrontos entre Assad e forças de oposição. Em Fevereiro, morreu ao ser atingida por um bombardeamento. O fotojornalista francês Rémi Ochlik, de 28 anos, também morreu e mais dois jornalistas estrangeiros ficaram gravemente feridos, mas sobreviveram.
A documentação que serve de base para o processo saiu da Síria pela mão de desertores, opositores, entre outros. Foi reunida pela organização independente sediada em São Francisco Comissão para a Justiça Internacional e Responsabilização, que pretende instruir um processo mais amplo de crimes de guerra cometidos por Damasco.
Os documentos apresentados à juíza americana lançam luz não só sobre a morte de Colvin e Ochlik, mas também sobre o que parece ser uma estratégia montada pelo regime de Assad e que tinha como alvos jornalistas que relatavam o que se passava na Síria e os que passavam informação para o exterior – de acordo com a BBC, mais de 200 jornalistas morreram na Síria durante os sete anos de guerra. Damasco desmentiu sempre qualquer envolvimento nestas mortes.
Ao New York Times os advogados da família da jornalista dizem que estas são as provas mais fortes divulgadas até hoje contra o Governo sírio sobre este tipo de actuação. “Estes documentos permitem-nos reconstruir uma política mais ampla que identificava trabalhadores de media como alvos no princípio do conflito”, disse ao jornal americano Scott Gilmore, um dos advogados. “Também expõem a estrutura de comando e controlo e revelam coisas que nem os especialistas sobre a Síria sabem.”
O Governo de Damasco nunca respondeu ao tribunal no qual deu entrada o processo, mas ao Washington Post um porta-voz governamental desmentiu todas as acusações.
Um dos desertores que apresentaram o seu testemunho no processo é identificado como Ulysses. É um antigo agente dos serviços de informação sírios, que se encontra neste momento exilado, e foi ele quem relatou os festejos dos agentes e oficiais sírios depois da morte de Colvin.
Além disso, Ulysses garante que as autoridades sírias souberam da localização da jornalista através intercepções telefónicas e de satélite. Estas informações foram depois cruzadas com a indicação de uma informante síria, que dizia saber onde estavam os jornalistas.
Os jornais internacionais que analisaram a documentação judicial dizem que é impossível confirmar de forma independente a informação aí exposta, nomeadamente o testemunho de Ulysses. Porém, o facto de este desertor ter sido interrogado por várias agências de segurança internacionais indica que lhe é atribuído um elevado grau de credibilidade.
Ulysses diz ainda que Maher al-Assad, irmão do Presidente sírio, supervisionou toda esta operação, corroborando suspeitas iniciais. De acordo com o seu depoimento, o general Shehadeh, que na altura operava em Homs e que terá liderado a operação que resultou no homicídio dos jornalistas, foi pouco tempo depois promovido a líder da rede de informação do Exército sírio em todo o país.
Além disso, Khaled al-Fares, líder da milícia pró-Damasco da qual fazia parte uma rede de informadores em Baba Amr, recebeu um Hyundai Genesis preto das mãos de Maher al-Assad. Esta oferta terá servido de recompensa pelo seu papel na eliminação dos jornalistas.
Melhor usar a arma do que a câmara
Ulysses descreve ainda como os militares sírios planearam o homicídio do jornalista francês Gilles Jacquier, um mês antes da morte de Colvin. De acordo com o que afirma, o Governo de Damasco levou uma delegação de jornalistas estrangeiros a Homs para assistir a uma manifestação pró-regime. “Todo o acontecimento foi montado”, diz.
Os serviços de segurança sírios lançaram um ataque com uma granada contra a manifestação, culpando a oposição armada. Jacquier era um dos jornalistas que estavam no local e que começou a documentar as consequências do ataque. Nessa altura, as forças sírias dispararam um morteiro para a localização exacta do francês.
Jacquier ficou gravemente ferido. Coube a Wael Salamah, agente dos serviços de informação sírios, assegurar que o jornalista não saía do local vivo, segundo conta Ulysses. Salamah levou-o para um táxi, em vez de uma ambulância. O jornalista foi encontrado pouco tempo depois morto na rua. O Governo fez então “circular uma história fabricada de que os rebeldes o tinham matado”.
Abdel Majid Barakat é outro dos desertores que falaram com os advogados da família de Colvin. Diz ter sido um agente de informação com acesso a reuniões de segurança de alto nível do regime e garante que, no início da revolta contra o Governo, Assad considerava os activistas da oposição que divulgavam vídeos no YouTube e os jornalistas a sua maior ameaça. Maior inclusivamente do que os próprios manifestantes e os rebeldes armados.
Ao site The Intercept, Aziz Assad, um sírio que fugiu do país em 2015, concorda com esta visão: “Quando eras detido pelo regime, era muito melhor que te prendessem como um militante armado do que como alguém que estava a documentar ou a filmar os crimes que estavam a ser cometidos no país. Era melhor, muito melhor, ser acusado de andar com uma arma do que com uma câmara.”