Comer só por prazer não torna uma pessoa obesa, mas ajuda

Equipa de investigadores do Centro Champalimaud, em Lisboa, quantificou a relação entre aquilo que é considerado como ser um “bom garfo” e o índice de massa corporal.

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Estudo revelou que 40% das pessoas que revelaram as mais altas pontuações na escala de fome hedónica são obesas Sérgio Azenha

Chamam-lhe fome hedónica e é definida como “a vontade de comer por prazer e não para ganhar energia”. Um estudo publicado esta quarta-feira na revista Scientific Reports, do grupo da Nature, por cientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, confirmou a relação entre o prazer de comer e um maior risco de obesidade, mas concluiu que a tal fome hedónica “não conta a história toda” sobre ser (ou não) gordo. Segundo os cálculos que apresentam no artigo científico, o prazer por comer explica apenas menos de 10% da variabilidade do Índice de Massa Corporal (IMC).

Para quem não sabe, há uma escala para avaliar a vontade de comer por prazer. É conhecida como Power Food Scale (PFS) e é usada em estudos científicos, permitindo atribuir a cada pessoa um valor sobre a fome hedónica que vai de 1 (mínimo) a 5 (máximo) através de um questionário. A equipa de investigadores do Centro Champalimaud, liderada pelo psiquiatra e neurocientista Albino Oliveira Maia, usou esta escala para confirmar e quantificar a relação entre a fome hedónica e o IMC e, consequentemente, a ligação com a obesidade. “Tanto quanto sabemos, este é o primeiro estudo que caracteriza e quantifica as associações entre a PFS e o IMC”, adianta Albino Oliveira Maia.

A ligação existe, de facto. No entanto, não será tão robusta como se poderia imaginar. O estudo envolveu três grupos de participantes e, no grupo representativo da população portuguesa, com um total de 865 pessoas, concluiu-se que entre as pessoas classificadas com 4 e 5 pontos na PFS (ou seja, que revelaram muito prazer em comer) “apenas” 40% eram obesos. O que, escusado seria dizer, significa que 60% das pessoas que gostam muito de comer não são obesas. Pelo menos, não são ainda.

Albino Oliveira Maia confirma ao PÚBLICO que os resultados obtidos não dizem respeito ao risco de obesidade no futuro para esta fatia de 60% de “bons garfos”, sendo necessário um estudo longitudinal para confirmar esta hipótese. Para já, nota o investigador, os dados mostram que a relação existe mas também que o prazer de comer não é o único factor de risco na obesidade. Na verdade, sabemos que ter prazer em comer não é sinónimo de comer muito. 

“O prazer de ingerir alimentos é um comportamento natural e saudável que, na obesidade, adquire contornos particulares”, refere Gabriela Ribeiro, nutricionista clínica e primeira autora do artigo agora publicado, num comunicado do Centro Champalimaud sobre o estudo. E acrescenta: “Claro que, para alguém ser obeso, tem de haver um excesso de ingestão, superior às necessidades energéticas. E, naturalmente, o prazer alimentar contribui para esse excesso, mas o que mostrámos é que isso não explica a maioria dos casos de obesidade.”

Um prazer com limites

Albino Oliveira Maia explica que no trabalho foram usados três grupos distintos. Assim, havia um grupo com “123 doentes clinicamente obesos – ou seja, com um IMC superior a 30 –; 278 estudantes do ensino profissional e superior (com uma média de IMC de 22); e ainda, para confirmar as suas conclusões num grupo maior, 865 pessoas globalmente representativas da população portuguesa (com uma média de IMC de 25), recrutadas através de resposta a um inquérito da Deco Proteste (a principal associação de consumidores em Portugal)”. Albino Oliveira Maia recorda que o valor limite superior de IMC (que estabelece a fronteira com o excesso de peso) é de 24 e que a escala de fome hedónica tem uma estabilidade relativa, ou seja, o resultado num questionário feito hoje poderá ser diferente passado algumas semanas. Por outro lado, os dados fornecidos nos questionários ao grupo representativo da população também têm fragilidades. “Sabemos que nestes questionários as pessoas podem declarar valores mais simpáticos do que a realidade”, admite o autor do trabalho. 

O comunicado sobre o estudo centra-se nos resultados que dizem respeito ao grupo representativo da população portuguesa, ou seja, a todos nós. Através de uma análise estatística concluiu-se assim que “no grupo das pessoas que tinham obtido 1 ou 2 pontos na escala PFS, apenas 10% eram obesos, enquanto entre as que tinham 4 e 5 pontos, o número de obesos subiu para 40%”. O trabalho revelou também que, para cada aumento de um ponto na escala, a probabilidade de se ser obeso quase duplicava. 

No grupo dos obesos, procurou-se saber qual a distribuição da escala PFS. “Percebemos que não têm todos fome hedónica nos valores mais elevados da escala”, refere o investigador, admitindo, no entanto, que essa quantificação mais pormenorizada não foi feita neste estudo. Apesar disso, acredita que na amostra clínica (dos obesos) as pessoas com valores altos da escala PFS devem representar uma “percentagem elevada”. Mas, sublinha, há também uma parte considerável das pessoas deste grupo que é obesa e não revela níveis altos de fome hedónica. No artigo, a média dos resultados PFS no grupo da amostra clínica está entre os 2 e os 3 pontos, considerando diferentes critérios analisados.

Albino Oliveira Maia afirma que, feitas as contas e recorrendo a modelos estatísticos ajustados às várias amostras estudadas, a fome hedónica explica menos de 10% da variabilidade do IMC. “A recompensa alimentar não é a principal explicação da obesidade. Portanto, a ‘dependência’ da comida não conta a história toda.” 

A idade, o nível de instrução e o género, no seu conjunto, são preditivos de 6% da variabilidade do peso, por exemplo. A estes somam-se os 10% atribuíveis à fome hedónica. E o resto? Onde encontramos os “culpados” pelos 84% que faltam até à enorme probabilidade de ser obeso? “Na actividade física, na variabilidade genética, em algumas questões relacionadas com o sistema nervoso central, em efeitos de algum tipo específico de medicação, questões culturais, entre muitos outros factores”, responde o neurocientista. E conclui: “É preciso perceber melhor o que determina a presença de obesidade e o que determina os comportamentos alimentares. Só assim podemos desenvolver melhores intervenções na educação para a saúde.”

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