Céu mais nublado na Europa
A União Europeia já foi um poderoso exportador de democracia e de estabilidade, porque funcionava como o clube a que toda a gente queria pertencer. Hoje, é um importador de instabilidade. Precisa de redefinir rapidamente aquilo que quer ser no futuro.
1. Não. As luzes não se apagaram na Europa. As luzes da democracia, da paz e da tolerância continuam a iluminar o velho continente, que foi reconstruído depois da II Guerra para impedir o regresso do nacionalismo e das suas grandes tragédias. A diferença está em que a Europa está a ver despontar os sinais de que a batalha nunca está ganha. A Hungria acaba de o demonstrar, não permitindo qualquer interpretação mais optimista. Viktor Orbán ganhou folgadamente o seu terceiro mandato. A sua política nacionalista e a sua “guerra de usura” com a União Europeia continuam a dar frutos. O seu apelo à defesa da cristandade contra o Islão, algo impensável há meia dúzia de anos, continua a dar votos. O anti-semitismo, esse mal que se acreditava erradicado para sempre, nem sequer se esconde. George Soros foi o alvo central da campanha, enquanto símbolo da reconstrução do mito do judeu milionário, usurário e liberal, que mina os valores da pátria. Os cartazes com o seu rosto de nariz adunco e os seus braços longos sobre os ombros dos líderes da oposição falam por si. A Europa, pura e simplesmente, não pode ficar indiferente.
2. O Fidesz de Orbán, um opositor ao regime comunista e um grande admirador de Thatcher, começou por ser saudado como um partido liberal, que colocava o “regresso à Europa” como objectivo número um. Havia, nesses anos iniciais, um fortíssimo incentivo para prosseguir uma transição democrática suficientemente credível para permitir a integração na União Europeia. Ao lado da Polónia, da Republica Checa, da Eslováquia, da Eslovénia e dos Bálticos, o “grande alargamento” a Leste acabou por concretizar-se em 2004. A transição para uma economia de mercado foi dura. Construir um Estado de Direito sobre os escombros de um regime totalitário que durou mais de 40 anos, não era tarefa fácil. A consolidação democrática revelou-se mais difícil do que a transição. A crise existencial que abalou a Europa a partir de 2009, com as suas ondas de choque políticas, tornou o caminho mais fácil para a emergência do nacionalismo. Na Hungria e na Polónia, como na França ou na Alemanha. A diferença é que a resistência das democracias liberais a um fenómeno que não tem poupado quase ninguém, é muito maior. A Leste, o risco passou a ser a consolidação de regimes autoritários, incompatíveis com os fundamentos da União Europeia.
3. Há também responsabilidades europeias. Durante demasiado tempo, Bruxelas, Berlim ou Paris ignoraram os problemas específicos dos recém-chegados de Leste. Não resistiram, por vezes, à tentação de tratá-los como membros de segunda. Durante a guerra do Iraque, quando em Praga, Budapeste ou Varsóvia era claro o apoio aos Estados Unidos (incluindo figuras como Havel), porque era aos Estados Unidos que atribuíam a sua libertação, Jacques Chirac dizia-lhes que “faziam melhor em estar calados”. Quando alguns deles, sobretudo os Bálticos e a Polónia, chamaram a atenção para o perigo de uma Rússia regressada à reconquista da sua esfera de influência, os seus pares ocidentais reagiram ao alerta como um incómodo. Hoje, não é preciso dizer que tinham bastante razão. O antieuropeísmo também se foi alimentando destes casos. E, como sabemos, na Europa a História continua sempre à mão para justificar o nacionalismo, apontando o dedo aos outros.
4. A vaga de refugiados que desaguou em território europeu a partir de 2015, na sequência da guerra na Síria, transformou-se rapidamente no argumento que faltava para dar força à deriva nacionalista e xenófoba, em sociedades que viveram durante mais de 40 anos fechadas sobre si próprias, onde a homogeneidade étnica se manteve e onde os “outros” não existiam. Mas, mais uma vez, o fenómeno é comum a quase todo o espaço europeu, onde os migrantes de origem islâmica são hoje o alvo principal dos partidos populistas e nacionalistas. Angela Merkel já teve de mandar calar várias vezes o seu novo ministro do Interior e da Pátria, o líder da CSU da Baviera, que fala dos imigrantes com as mesmas palavras de Orbán. A diferença, mais uma vez, é fundamental. O Governo húngaro tenta destruir as bases do Estado de Direito, silenciando a imprensa e controlado os tribunais (o mesmo modelo posto em prática na Polónia). Na Alemanha, nada disso aconteceu ou acontecerá.
5. Em Budapeste ou Varsóvia, os governos autoritários não põem em causa a pertença à União Europeia ou à NATO. Precisam de ambas para financiar o seu desenvolvimento (a enxurrada de fundos permite a Orbán manter satisfeitos os empresários que se portarem bem) e garantir-lhes a segurança num mundo em crescente turbulência. O seu jogo é ser, ao mesmo tempo, europeu e antieuropeu, receber o máximo e contribuir com o mínimo. A crise europeia apenas tornou este jogo mais fácil. A União já foi um poderoso exportador de democracia e de estabilidade, porque funcionava como o clube a que toda a gente queria pertencer. Hoje, é um importador de instabilidade. Precisa de redefinir rapidamente aquilo que quer ser no futuro. A primeira coisa a fazer será recordar quais são os fundamentos em que assenta a integração europeia e exigir que sejam cumpridos. Desta vez, não vai poder contar com a ajuda da América e terá, ao mesmo tempo, de enfrentar a Rússia de Putin. O Presidente americano é o melhor aliado que novos regimes poderiam ter. “A questão fundamental do nosso tempo é se o Ocidente tem a vontade para sobreviver”, disse Trump em Varsóvia. “Temos o respeito suficiente pelos nossos cidadãos para garantir a protecção das nossas fronteiras?” Orbán não diria melhor. Hoje, o céu europeu está um pouco mais nublado. Ainda estamos longe do nevoeiro cerrado. Mas é prudente não olhar para o lado.