Eu sou Lula?
A estratégia é velha de séculos, diria, e entre nós foi ensaiada, em tempos mais recentes, por José Sócrates, com os resultados conhecidos. Simplesmente, para nosso bem, as magistraturas souberam, em geral, afastar-se da arena política e limitar-se àquilo que efectivamente lhes compete.
O actual momento que o Brasil vive é, a vários níveis, extraordinário, e dele podemos retirar uma série de lições sobre diversos tópicos. Desde questões de índole jurídico-dogmáticas atinentes à prova indirecta, até ao complexíssimo sistema de recursos brasileiro, até à sempiterna politização da justiça e à “justicialização” da política.
Escrevo logo após o discurso de Lula da Silva aos seus apoiantes, em S. Bernardo do Campo, onde tudo começou. Congratulo-me com a decisão anunciada pelo ex-Presidente de se entregar para cumprir o mandado. Todavia, pasmo-me não tanto com várias passagens do seu discurso – adaptado ao que Lula deseja –, mas com várias reacções que vou escutando.
Imagine-se que o cidadão Luiz Inácio Costa foi condenado, de entre outros, por um delito de corrupção, decisão essa que foi confirmada por unanimidade por um Colectivo de 2.ª instância. Ainda permitindo esse sistema jurídico uma providência de habeas corpus, em que basicamente se discutia se é ou não admissível o início do cumprimento de uma pena de prisão antes de excutidos todos os meios impugnatórios, nas hipóteses – como esta – em que a Lei não admite um segundo grau de recurso, pela margem mínima, o Supremo Tribunal Federal (STF) não concedeu provimento à providência impetrada. O juiz titular do processo, em face desta decisão, emite mandado de detenção para cumprimento de pena, concedendo ainda um prazo ao condenado para voluntariamente se entregar à Polícia Federal. Esgotado esse prazo, o condenado incumpre.
Se o nome do cidadão for Costa e não Lula da Silva, ninguém duvidaria da Justiça, ou seja, que esta funcionou de acordo com a Constituição Federal de 1988 e com as leis ordinárias. Ninguém deixaria de dizer que os órgãos de polícia criminal, submetidos ao princípio da legalidade e do respeito pelas decisões dos Tribunais, têm de dar cumprimento ao mandado. E se Lula diz que não está acima da Lei – bela proclamação democrática, mas que parece servir apenas para os outros –, então que se cumpra a decisão judicial. É evidente, porém, que ninguém é ingénuo ao ponto de não entender aqui a importância de se chamar Lula da Silva. Como também, mesmo à distância, ninguém deixa de perceber que Sérgio Moro tem tomado algumas decisões criticáveis, de um ponto de vista técnico. A última das quais foi emitir o mandado sem aguardar a notificação formal da decisão do STF, dando lugar a especulações de “sanha persecutória” contra Lula. Tudo o que este último deseja. Do mesmo modo, com a ressalva que não sou especialista em Direito Processual Penal brasileiro, resulta dos princípios gerais que o início da fase executiva da decisão condenatória só ocorre quando excutidas todas as vias de impugnação, mesmo que se não tratem de verdadeiros recursos, mas, p. ex., de arguição de nulidades da decisão do STF ou de pedidos de aclaração. E isto mesmo que ambos sejam manifestamente dilatórios e impertinentes, pelo simples facto de tal estar consagrado no Código de Processo Penal. Insustentável, ainda, o voto de Rosa Weber, que defende a posição aqui propugnada, mas que, apelando a uma espécie de “consciência colectiva” do pulsar do STF, vota com aquela que vai parecendo ser a jurisprudência dominante naquele Tribunal. Um mau serviço à Justiça e, uma vez mais, a abrir o flanco àquilo que Lula deseja: politizar este processo judicial o mais possível.
A estratégia é velha de séculos, diria, e entre nós foi ensaiada, em tempos mais recentes, por José Sócrates, com os resultados conhecidos. Simplesmente, para nosso bem, as magistraturas souberam, em geral, afastar-se da arena política e limitar-se àquilo que efectivamente lhes compete, ao invés do que vem sucedendo, em alguns pontos, com o sistema brasileiro. A vontade de “ver a justiça a ser feita” torna as sessões do STF em verdadeiras telenovelas, com pessoalização dos juízes e mesmo com ataques de vandalismo às suas residências.
Lula deseja ser mais um mito, “uma ideia”, como afirmou. E transformar os mais desfavorecidos em terras de Vera-Cruz em soldados dessa revolução em marcha, atirando agora a responsabilidade para o poder judicial. A estratégia da martirização, típica em várias latitudes do mundo, mas com especial relevo na América Latina. Os tiques de uma esquerda que lida mal com o Estado de Direito, quando ele não olha a cores políticas, investiga, julga e condena independentemente dos quadrantes. E obviamente que se não diga que Lula pode ter “roubado”, mas fez muito, como a “bolsa família” e outras medidas sociais. Essa é a imagem caricatural de países como o Brasil que a todos nos desgosta, cientes de que este país tem todas as condições para ser uma das maiores potências mundiais. Para tal, a corrupção endémica tem de acabar e não se pode compactuar com “todos somos Lula”, porque o crime que cometemos foi ousar um melhor futuro para os pobres: “botar negros na Universidade”, dar-lhes casa condigna, acesso a cuidados de saúde. Ninguém duvida que essas medidas são essenciais. Não podemos é deixar-nos confundir e fazer o jogo de Lula: a fuga para a frente.
Às vezes, o mais difícil é aceitar as coisas óbvias, como se procurou demonstrar com a mudança do apelido de Lula da Silva para Costa. Não há amor à democracia em incentivar o povo a lutar nas ruas pela libertação do seu mítico líder, condenado por decisão transitada em julgado. Não há amor à democracia escondendo crimes – e todos temos de acreditar que as decisões judiciais, em regra, são correctas, sob pena de implosão do próprio Estado de Direito – atrás de importantes medidas políticas, pois não conheço qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, ou sequer circunstância modificativa, que consista em relevantes serviços sociais. Cada coisa no seu lugar: à política o que é dela, e à Justiça o que só esta pode decidir.
Lula confunde intencionalmente os dois planos, de tal modo que os juízes e os promotores estão ao serviço da burguesia reinante, do grande capital, dos brancos que oprimem os negros e dos fazendeiros que se opõem ao movimento dos “sem-terra”. Lula sabe que os próximos tempos serão um enorme desafio à maturidade da democracia brasileira e ao bom senso dos seus cidadãos. Um país em recessão económica, com um Presidente no poder que só ainda não foi julgado porque comprou favores e votos, fracturado entre aqueles que vêem em Lula o líder messiânico que de metalúrgico chegou a Presidente da República e os demais que entendem que a primeira obrigação do Estado é garantir o império da Lei, mesmo que o façam por interesses meramente instrumentais-estratégicos. É evidente que a realidade brasileira é feita de muitos tons de cinza e que, creio, apenas uma minoria estará verdadeiramente interessada em que casos como este sirvam para o reforço da separação dos poderes do Estado e para a afirmação da República e dos seus valores.
“Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a chegada da Primavera!”. Foi assim que Lula, parafraseando uma frase que, em 1982, uma menina de 10 anos lhe atirou, terminou o seu discurso antes da apoteótica saída em ombros. Eu diria que os populistas podem matar um, dois ou três esteios do Estado de Direito, mas faço votos para que jamais consigam deter a sujeição de todos os cidadãos ao império da Lei democrática. Neste ponto, não sou Lula, como, ao contrário, fui (e fomos) Charlie.