Pode Portugal controlar as “greves” da Ryanair?
A escolha da lei irlandesa não pode privar o trabalhador da proteção que a lei portuguesa lhe atribui.
Cada Estado soberano detém o seu próprio sistema jurídico que se desenvolve com autonomia, mas que apresenta divergências na solução de problemas jurídicos. À pluralidade desses sistemas corresponde uma pluralidade de regulação jurídica das situações da vida privada e o que hoje se verifica é a crescente internacionalização das relações privadas, tendo de se determinar a que ordenamento se vai pedir a solução do problema.
Nestes termos, ao contrato individual de trabalho é aplicável a lei escolhida pelas partes. No caso dos trabalhadores da Ryanair é aplicável o direito irlandês por determinação das partes.
No entanto, nos termos do Regulamento de Roma I (CE n.º 593/2008), nos contratos individuais de trabalho, artigo 8.º, a “escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável”.
Neste caso, e apesar da especial característica dos tripulantes de aviões, os mesmos prestavam habitualmente o seu trabalho em Portugal, uma vez que este era o seu ponto de embarque e de chegada. Se não tivesse existido acordo por via contratual, seria aplicável a lei portuguesa.
No entanto, a escolha da lei irlandesa não pode privar o trabalhador da proteção que a lei portuguesa, neste caso, lhe atribui, através das suas disposições não derrogáveis por acordo, pois os trabalhadores não deverão ser privados da proteção que lhes é conferida pelas disposições que não podem ser derrogadas por acordo ou que só podem sê-lo a seu favor.
O artigo 535.º do Código do Trabalho dispõe que não se pode alocar trabalhadores estrangeiros ou até mesmo portugueses a uma rota que não a sua com o objetivo de “cobrir” a greve. Esta atuação vai contra os fins ou objetivos da greve, consubstanciando esta norma, uma norma imperativa, não derrogável por acordo das partes. A violação desta proibição constitui uma contraordenação muito grave com coimas de acordo com o volume de faturação, que neste caso irá para os valores máximos.
Mas afinal qual é a proteção atribuída por esta norma aos trabalhadores grevistas? Convocada pelo Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), esta greve reivindica a aplicação da lei nacional aos trabalhadores das bases da companhia em Portugal, por não se estar a respeitar as baixas médicas e as ausências pela parentalidade.
O direito à greve encontra-se consagrado no artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa e, sendo um direito fundamental dos trabalhadores, é irrenunciável. Este é um direito “fortemente tutelado”, visto que a Lei Fundamental não se limita a atribuir ao legislador ordinário a regulamentação do direito à greve, sob pena de o seu exercício ficar sujeito a variações políticas e ideológicas.
A entidade empregadora não pode, por isso, durante a greve, substituir grevistas nem admitir novos trabalhadores para esse fim. A tarefa a cargo de trabalhador em greve não pode, durante o período em que esta durar, ser realizada por empresa contratada para esse fim, salvo se não estiverem asseguradas as necessidades sociais impreteríveis ou a segurança e manutenção do equipamento e instalações, o que não é este caso.
O Direito Internacional Privado realiza a justiça em dois estádios: através da escolha do (i) elemento de conexão mais adequado à solução do problema e através de um (ii) controlo e de uma modelação social ao caso concreto, pela atuação da reserva de ordem pública internacional do Estado português.
Este controlo é feito através de uma cláusula geral que atua quando da aplicação do direito estrangeiro resulta uma violação intolerável dos princípios fundamentais da ordem pública do foro. Tal significa que, mesmo que fosse aplicável o direito irlandês, uma vez que os trabalhadores têm uma conexão muito forte com o Estado português pode dar-se o caso de ter de atuar a reserva de ordem pública internacional do Estado português!
As “irregularidades” da greve têm levado as autoridades portuguesas, nomeadamente a ACT, a controlar in loco se a mesmo está a ser violada; e as comissões parlamentares de Trabalho e de Economia aprovaram a audição no Parlamento de representantes da administração da Ryanair, das associações de aviação e a fiscalização do trabalho sobre esta greve. Tudo isto demonstra a preocupação imediata destas entidades na proteção do direito constitucionalmente consagrado.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico