Comiam pizza e jogavam ao pião. Estão acusados de terrorismo
Moraram em Aveiro, onde mandaram imprimir T-shirts com a frase “Islam is beauty forever”. Detidos à espera de julgamento em Monsanto e em França, negam ligações ao Daesh. O PÚBLICO consultou o processo que mostra a vida da dupla em Portugal e as deslocações ao exterior que faziam.
Tinha uma vida de playboy: bebia álcool, tinha namorada e não queria saber da religião para nada. Só se radicalizou depois de deixar Marrocos, onde nasceu, e vir para Portugal, contam vários amigos e conhecidos. Hicham El Hanafi tornou-se conhecido aos 26 anos pelas piores razões: dizem as autoridades que se preparava para participar num atentado terrorista em França, se não o tivessem prendido na véspera, juntamente com outros cúmplices jihadistas.
Foi em Dezembro de 2016, três anos depois de aterrar em Lisboa juntamente com um homem já sexagenário, Abdesselam Tazi. Traziam passaportes falsos na carteira e o discurso preparado para o caso de serem apanhados. O mais velho tinha sido polícia em Marrocos, mas como se revoltara contra as práticas de tortura naquele país haviam-no perseguido. O mais novo, que na sua terra tinha trabalhado num supermercado e num restaurante, dizia-se também alvo de perseguição política.
Durante três anos circularam à vontade não só pelo espaço Schengen como fazendo incursões à América Latina. Tinham-se tornado oficialmente refugiados, e era nessa qualidade que recebiam um subsídio de 250 euros mensais pago pelo Estado português. Um apoio escasso para as gordas despesas que enfrentavam: compraram telemóveis de última geração por muitas centenas de euros e chegavam a hospedar-se em hotéis pouco compatíveis com os seus rendimentos. Noutras ocasiões alugavam quartos particulares em casas modestas, como sucedeu em Aveiro, onde encontraram uma reformada que acreditava estudarem línguas e lhes dava abrigo a troco de cem euros mensais.
À mulher não passava despercebido Abdesselam Tazi: de pasta e blazer, às vezes de gravata e colete a condizer por baixo, parecia “um doutor”. Embora vestissem habitualmente roupa ocidental, traziam-lhe muitas vezes para lavar túnicas compridas até aos pés, “como os padres”. Nunca lhes viu as T-shirts onde mandaram imprimir, em letras garrafais, a frase “Islam is beauty forever”. Tinham sapatilhas e jogavam futebol perto da ria. E também ao pião, como se fossem miúdos.
Frequentavam a pizzaria. Chegaram a tentar convencê-la a acompanhá-los à igreja, para que conhecesse Alá, e a dizer-lhe para não pedir nada a Jesus. Que colocasse antes as mãos unidas acima da cabeça, implorando: “Ajuda-me, Alá!”
A reformada apiedava-se deles e limpava-lhes o quarto. Volta e meia ausentavam-se durante uns dias de Aveiro, a pretexto disto ou daquilo. Passavam longas temporadas na Alemanha, onde um deles possuía residência, e por várias vezes voltaram ao centro de acolhimento para refugiados da Bobadela, onde tinham ficado durante meses quando chegaram a Portugal em 2013.
Na versão do Ministério Público português, que acusou na semana passada o marroquino de 64 anos (detido em Monsanto) de vários crimes ligados ao terrorismo, para o ex-polícia o local era uma espécie de coutada de caça privativa: “Usou o território português e o estatuto de refugiado que aqui lhe foi concedido para aqui recrutar novos combatentes, em especial de oriundos de Marrocos, procurando novos elementos para a causa do Daesh nos centros de acolhimento de refugiados — o que revela ainda maior censurabilidade, pelo facto de serem pessoas fragilizadas e em situação económica precária, muitas delas já vítimas de crimes violentos.”
O PÚBLICO consultou o processo. Uma assistente social do centro de refugiados recordou, durante o seu interrogatório na Polícia Judiciária, o impressionante nível cultural de Abdesselam Tazi, que a certa altura se mostrou interessado na emancipação feminina em Portugal. Dizia que em Marrocos tinha lutado pelos direitos das mulheres. Mas não foi isso que terá mostrado a uma prima de Hicham El Hanafi que mandou vir daquele país, e que ficou a trabalhar em Portugal num call center: avisou-a a certa altura que devia usar roupas tradicionais, cobrir a cabeça com um lenço e casar-se com aquele familiar.
Várias testemunhas ouvidas quer pelas autoridades portuguesas quer por polícias de outros países assacam ao ex-polícia a conversão de Hicham El Hanafi. Dizem que o controlava — ao ponto de o ter convencido a enviar vários familiares seus residentes em Marrocos para a Síria, incluindo a mãe e irmãs menores, uma das quais viria a ser prometida a um combatente.
Um irmão de Hicham El Hanafi que chegou a trabalhar em Portugal, na construção civil, garantiu que ele lhe confessou ter recebido treino militar na Síria durante dois meses, após o que foi mandado de volta para Portugal, com a missão de recrutar adeptos. Tentou mesmo aliciá-lo a si, contou: o Daesh pagava 1800 euros mensais a todos os que aderissem à causa.
Cartas da prisão a ministros
Preso preventivamente em França à espera de julgamento, Hicham El Hanafi, suspeito de preparar um atentado naquele país, nega ser terrorista — muito embora um jihadista das suas relações o tenha confirmado à polícia. E Tazi também nega, alegando que os manuscritos com passagens do Corão consideradas violentas e outro material do mesmo género encontrado no quarto que partilhava com Hicham El Hanafi não lhe pertencia.
Se há gente a implicá-lo, só pode ser por não ter alinhado num negócio de tráfico de droga em que se recusou a alinhar — diz este homem outrora elegante, mas agora obrigado ao uniforme da cadeia de Monsanto, que já enviou cartas a expor a sua situação a vários ministros e magistrados, a quem aproveitou para desejar boas festas. Nem António Costa escapou.
O único crime que Tazi admite relaciona-se com a falsificação de cartões de crédito. Ele próprio com várias identidades falsas, usava-os para comprar telemóveis e roupa. E para pagar estadias nos hotéis — muito embora também gostasse de fazer campismo quando ia ao Algarve. Segundo a acusação, a revenda dos artigos electrónicos, que adquiria em grande quantidade, servia para financiar a guerra santa e para recrutar novos soldados. A explicação do arguido, que tem um filho na Suécia, é bem mais comezinha: diz que usava cartões que não eram seus por uma questão de sobrevivência. E porque queria abrir um negócio em Portugal. De resto, já esteve preso seis meses na Alemanha por este tipo de delito.
O seu advogado, Lopes Guerreiro, desvaloriza os indícios apresentados pelas autoridades: “Inexiste qualquer prova concreta, palpável e objectiva de terrorismo.” Diz que o seu cliente ficou angustiado com a acusação e prepara-se para pedir a abertura da instrução do processo, para tentar que o caso seja arquivado antes de chegar a julgamento.
A investigação prossegue em vários pontos da Europa, Portugal incluído.