Bragança reinventa-se mas não perde o ritmo das estações
É verdade que a cidade está a reinventar-se — à mesa, em museus, em arte urbana. No entanto, continua a ser a filha da natureza que a rodeia. É aí, também, que se vislumbra o carácter da cidade que Trás-os-Montes moldou à sua imagem. Para lá do Marão, o melhor são os que lá estão.
Não há displicência no modo como Júlia Fernandes se encosta à ombreira da porta. O sol é um bálsamo quando a terra fria transmontana faz jus ao nome e o Domingo de Ramos amanheceu inundado dele. Como não aproveitá-lo, sobretudo quando os dois dias anteriores foram de Inverno a impor-se à Primavera que chegou apenas no calendário? Alguém nos diz que, antigamente, a neve em Bragança chegava quase a tapar o arco que abre a Travessa do Arco, mesmo em frente à porta de Júlia. “Eu nunca vi isso”, diz despachada, “e estou aqui há 44 anos”. Veio de Prada, aldeia de Vinhais, com 25 anos, para limpar casas, tratar dos outros. “Agora trato de mim” (e os banhos de sol incipiente fazem, claro, parte do tratamento). De nevões, o último a ficar-lhe na memória foi o de 28 de Fevereiro — ainda se arrepia com a lembrança da neve no telhado que, ao derreter, lhe entra pela casa. De memórias respira muito Bragança. Mesmo que o objectivo seja o futuro.
Para o futuro das memórias abriu-se o Centro de Fotografia Georges Dussaud, onde a preto-e-branco se desenha um retrato de Trás-os-Montes das últimas décadas. Na Rua Abílio Beça, conhecida por aqui como “a rua dos museus”, o átrio recebe-nos com dois cartazes dos filmes (Eu, Tonya e A Idade da Pedra, sessões ao fim-de-semana) em exibição no Auditório Paulo Quintela, aqui no rés-do-chão, cuja reabertura, no ano passado, marcou a ressurreição do cinema em Bragança, cinco anos depois do encerramento das salas do centro comercial da cidade. É de olhos postos na Refeição comunitária, registada em Alturas do Barroso, em 1981, que ocupa a parede da escadaria, que subimos até à cápsula do tempo que Dussaud começou a montar em 1980, congelando momentos, paisagens, lavores — com gente dentro. Desde então, o fotógrafo francês regressa regularmente ao Nordeste transmontano e as exposições temporárias com as quais se vai gerindo o acervo das mais de 300 obras doadas até agora reflectem esses regressos. É assim que logo à entrada da exposição desdobrada em várias salas nos deparamos com Francisco Rodrigues, António Lopes, Avelino Martins e Julieta Esteves e Duarte Candeias, rostos fixados a preto-e-branco em 2014 e 2016, mas que continuam a cores por detrás dos balcões dos seus pequenos negócios em Bragança. Não os conheceremos, porém, ainda que um dos objectivos do projecto Mais Bragança, promovido pela nossa anfitriã, a Associação Comercial Industrial e Serviços de Bragança (ACISB), seja promover o comércio tradicional, juntamente com a hotelaria e a restauração. O fim-de-semana não é a melhor altura para visitar o comércio tradicional da cidade já que, como é habitual, encerra às 13h de sábado. Na verdade, parece que parte da cidade fecha ao fim-de-semana; a intuição parece confirmar-se quando se ouve brigantinos dizer que muita da população aproveita para “regressar” às aldeias.
No centro de Bragança, ao fim-de-semana, fica arquitectura que conta história e estórias, ficam visitantes, fica o lagarto gigante de Bordalo II e os companheiros de street art, ficam, então, lojas fechadas e museus abertos, ficam alguns cafés e muitos restaurantes de portas escancaradas — é metáfora, sim, o clima não está para exibições gratuitas de hospitalidade; mas é à mesa que esta hospitalidade se revela sem pudores e tal se comprova não só pela (lendária) abundância como pelas longas horas passadas à conversa entre os pratos que se sucedem. Neste fim-de-semana, ficam também estudantes de uma tuna do Porto em “rituais” à tarde e à noite; fica o Inverno e chega a Primavera; ficam aniversários: dois do Praça 16, ou apenas Praça, como é mais conhecido, bar na Praça da Sé, noite dividida entre rock alternativo e electrónica e com o projecto Lapantim já a rodar revisitando o trabalho de Giacometti nas aldeias de Gimonde e Parada; três da Tasca do Zé Tuga, na cidadela, que preenche de fado o final de tarde à sombra do castelo (e tutelado por um drone).
Montesinho (cada vez mais) selvagem
Bragança pode, portanto, esperar. Aproveitamos a dica para seguir até à aldeia que dá nome ao Parque Natural de Montesinho (PNM). Este é uma sinfonia da natureza, a um tempo áspera e meiga, inóspita e generosa. E, sim, não conseguimos resistir a fazer a comparação com as gentes transmontanas; e, sim, este é mais um caso em que o caminho até ao destino vale como destino (sem equívocos: a aldeia de Montesinho é como uma pérola guardada entre estes montes agrestes).?
No dia anterior à nossa chegada, a temperatura em Bragança chegou aos 19 graus, dizem-nos perante a intempérie que se abate à hora do nosso primeiro jantar. O vento corre louco e levanta contentores do lixo, a chuva, a saraiva e a neve misturam-se. Afinal, são ou não são nove meses de Inverno? A terra fria impõe-se e não é novidade: mostram-nos fotografias de há exactamente um ano e está tudo nevado. A neve também andará pela serra, até às 15h de sábado, prevê-se. Vamos preparados, portanto, e com ajustes ao percurso.
Mal damos pela saída de Bragança e já estamos no Parque de Montesinho. António Sá é o nosso cicerone pelo território de 75 mil hectares que se estende por Bragança (serra de Montesinho) e Vinhais (serra da Coroa). É um apaixonado por estes caminhos. Tanto que, há oito anos, trocou o litoral, “voluntariamente”, ironiza, por uma aldeia às portas de Bragança com 52 habitantes — “incluindo eu, os meus dois filhos e a minha mulher”, brinca. Sem olhar para trás: há boas escolas, a saúde é boa, está a hora e meia de Salamanca e a uma de Zamora, menos do que de Vila Real, resume (e a duas horas do Porto, acrescentamos). É fotógrafo e está habituado a guiar grupos por este ecossistema onde homem e natureza parecem falar em uníssono. “É único em Portugal. Vivem-se os ciclos naturais da região e percebe-se que o que beneficia a natureza beneficia o homem. E até os incêndios.” Ele aprendeu-o, “nas pessoas daqui é tudo intuitivo, sempre conviveram com isso”.
A paisagem corre lá fora, entre as curvas que vamos desenhando. Soutos, carvalhais, “que com os lameiros são as paisagens emblemáticas do parque”, florestas mistas. Às portas de Oleiros, um souto. “No Outono é fantástico, tudo amarelo. Se alguém pudesse vir apenas uma vez, diria que viesse na primeira quinzena de Novembro.” Também há beleza, mais crua e fantasmagórica, neste dia de Primavera invernal, onde umas centenas de metros por caminho enlameado nos deixam junto a castanheiros com 400, 500 anos. Arvorezinhas, então, agora são troncos nodosos, com frestas e “grutas”; no chão, castanhas, o símbolo do PNM. Bragança e Vinhais dividem 80% da sua produção nacional; veremos tantos soutos incipientes que António Sá dirá que estamos na maior zona de reflorestação do país.
Certo é que estamos numa zona que concentra 80% dos grandes mamíferos selvagens de Portugal e grandes mamíferos é sinal de biodiversidade. Javalis, corços, veados, lobos (nove alcateias) inseridos na cadeia alimentar. Não nos cruzamos com nenhum, apenas fuçadas de javali, que levantam a terra em busca de invertebrados, raízes, cogumelos, em lameiros, com a água como infusões prateadas a brilhar entre o verde da erva. Na Cova de Lua, diante do Santuário da Senhora da Hera, miramos um carvalhal, vestido de castanho e verde pálido dos líquenes (um sinal da pureza do ar), que cobre o monte para além dos lameiros (parte da maior mancha de carvalho-negral de Portugal); mais perto, é um choupal, troncos longos e esguios num rendilhado delicado.
Voltaremos a vê-los como guarda de honra ao rio Sabor, que com o Baceira e o Tuela (será Tua a partir de Mirandela) rasga o parque com truta e lontras à boleia. Os sardoais (bosques de azinheiras) já abundam (as pessoas daqui gostam da lenha de azinho para fazer o pão), o pinheiro silvestre aparece e a mil metros de altitude, com a neve já nas bermas, olhamos Espanha: em linha recta, estamos a 50 quilómetros do local onde há dois anos se avistaram ursos pardos — pela primeira vez desde o início do século XX. “Esta zona é muito selvagem e está cada vez mais selvagem. Há menos gente”, nota António Sá. Por isso, há que ter cuidado com o turismo, este “não pode condicionar a conservação da natureza porque esse é o grande trunfo turístico”.
De turismo já entende algo a escassa população da aldeia de Montesinho. Do pequeno café, sai um grupo grande quando chegamos, mas não o vemos pelas ruas de empedrado rude, onde as casas, tantas com as varandas de madeira e vasos alinhados à espera da explosão primaveril, surpreendem pelo colorido caótico das entradas. Começa a nevar e o único ruído que se escuta é o da água que corre solta forjando riachos — e Luz Casal, que chega com a voz abafada pelo granito da casa. Tem o sinal de turismo rural e é um dos motores da recuperação da aldeia.
Néons entre a história
É mais fácil entender a humildade da Igreja de Santa Maria e dos solares brigantinos, de que muito ouviremos falar, depois de conhecer a natureza em volta de Bragança: a cidade não subjugou a sua localização, adaptou-se. E isso é o que fazem os vencedores perenes. Não importa quantas vezes visitamos Bragança, a cidadela é a sua porta de entrada, mesmo que quem chegue não a veja, escondida que está pela cidade moderna. Voltemos então ao castelo, o coração da cidadela, para a inescapável peregrinação pela antiga “vila” e os seus locais mais emblemáticos que, à sua maneira, contam estórias da história. Vamos com Emília Nogueiro, história e arte no seu percurso académico e profissional — entraremos na sua galeria, precisamente “História e Arte”, na “rua dos museus” para sentir África: “Memórias da Escultura Mãe”, da colecção Pessoa.
Antes, então, o triângulo formado pelo best of da cidadela que seria um quadrado se o castelo entrasse, mas a sua visita fica de fora da visita — alberga um museu militar que “não representa o território”, diz Emília Nogueiro. Na igreja de Santa Maria não vemos quase nada das suas origens românicas, mas quase tudo da sua reformulação barroca, detemo-nos na capela dos Figueiredo (renascentista e barroca e, sobretudo, uma forma ostensiva de afirmar o catolicismo por parte de uma família de cristãos-novos) e as pinturas do tecto de madeira “apagam-se” sem que tivéssemos tido tempo de as mirar. A moeda necessária para que se acendam as luzes é gasta a ver a estátua de Maria Madalena no altar-mor, representada com o cabelo longo solto, vários séculos antes de as mulheres serem autorizadas a entrar nas igrejas de cabelos descobertos.
Na vizinha Domus Municipalis vamos ao encontro dos livros de história da escola, onde o edifício surge inevitavelmente, uma vez que é um dos raros exemplos de arquitectura civil românica em Portugal, ainda que já com elementos góticos. Terá sido erigida entre os séculos XIV e XV e funcionou como cisterna, com o salão superior a ser utilizado como espaço de reunião dos chamados “homens bons” — posteriormente haveria de albergar a câmara municipal até meados do século XIX. É este o espaço visitável, uma galeria exposta aos elementos pela arcada fenestrada contínua acompanhada por bancos de pedra — no chão, marcas gastas do que poderá ter sido um “jogo do galo” a distrair alguém mais distraído nas reuniões do conselho. Fechamos o circuito junto à torre de menagem, no Largo Santiago, onde o pelourinho sintetiza dois mil anos de história, mais coisa menos coisa. Isto porque a base da coluna medieval é proto-histórica, um berrão, herança dos povos castrejos que habitaram a região antes da chegada dos romanos.
A visita segue para fora das muralhas, pela Porta da Vila, mas fazemos parênteses para recomendar deambular um pouco pelo emaranhado de ruelas, quem sabe entrar no Museu Ibérico da Máscara e do Traje e sentar-se num dos bares ou restaurantes que aqui existem.
Seguiremos, então, extramuros, “descascando” a evolução da cidade até à Praça da Sé. Passamos a igreja do Convento de São Bento, mesmo ao lado das muralhas, onde as meninas das famílias ricas de Trás-os-Montes, muitas vezes de cristãos-novos, se faziam freiras, tantas vezes contrariadas. Por isso mesmo, os registos dos “visitadores” (uma espécie de inspectores) são pródigos em relatos de fugas e de visitas a tabernas e descrições de luxos, como duas ou três criadas (mais o cãozinho) por noviça. Um pouco abaixo, o Solar Santa Maria é um exemplo das construções nobres da região, quase todas dos séculos XVII e XVIII, humilde ainda assim, reflexo da escassez de recursos da região — como nas casas mais pobres, o rés-do-chão era reservado aos animais que serviam também como aquecimento para o andar nobre. Um pouco mais adiante, encontramos a primeira praça moderna de Bragança, a de São Vicente. O local que antes foi de feiras, mercados, festas, abrigou uma prisão civil e uma militar, hoje não passa de uma praça periférica (e algo indecisa no formato) no sopé das muralhas — contudo, na igreja de São Vicente, mais um templo românico que o barroco ocupou e onde se fazem limpezas depois de obras de recuperação, persiste uma lenda: aqui se terão casado D. Pedro e D. Inês.
A nossa visita guiada termina no Largo da Sé, abrigados da chuva no alpendre da antiga igreja jesuítica, parte de um complexo maior que inclui um colégio. Enquanto saem as crianças da catequese, observamos o cruzeiro no centro da praça diante de nós, uma coluna salomónica com detalhes expressivos que foi erguida pelos jesuítas, desmontada aquando da sua expulsão e recuperada pelo Abade de Baçal no início do século XX.
A visita guiada termina mas haveremos de voltar. Para um café matinal do outro lado do largo, no início da “rua dos museus”, no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, seguido de visita às exposições. No primeiro andar, vamos a Cabo Verde, sentir o “espírito do lugar” tal qual Graça Morais o captou quando lá esteve, entre 1988 e 1989. Com os rostos de tantas mulheres na retina passamos para a crise existencial de Knife and Wound, de Filipe Marques, fotografias e instalações, preto-e-branco e néons, confrontando-nos. Seguíssemos a mesma rua e teríamos o Museu do Abade de Baçal para (re)visitar e o Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano para descobrir (foi inaugurado em 2017) — e como mereceria a descoberta, se a alheira tantas vezes se sentou à mesa connosco.
Optamos por um desvio até ao rio Fervença pelo bairro típico dos Batocos, onde as pessoas ainda se sentam à porta de casa e caminham de pantufas pela rua. Num pátio, encontramos uma “Europa dos pequeninos”, como diz alguém — o que até seria uma boa designação não fosse termos vislumbrado o Taj Mahal no meio de uma miscelânea que mistura edifícios icónicos (de Portugal e do mundo — destaque para a Torre Eiffel) com cenas da natividade, do quotidiano e da imaginação. O rio Fervença corre ao lado, nervoso e saltitante. Caminhamos pelo chamado “corredor verde do Fervença” em contra-corrente, com o castelo a erguer-se por detrás de nós, no cimo do vale. Vemos antigos moinhos, minúsculas hortas em minúsculos socalcos de pequenas arribas, casas a rematar o leito do rio que corre no fundo até já estarmos diante do Jardim António José de Almeida com o seu coreto e os seus grafítis.
Pelo meio, “provocamos” trovões no Centro de Ciência Viva. O clima novamente a intrometer-se. Mas este é indissociável desta terra, moldou-lhe a geografia e o carácter. E senti-lo é uma das chaves para entrar na alma do Nordeste. Que é a mesma, não importa se é Inverno ou inferno: generosa e amena como o sol com que nos despedimos.
A Fugas viajou a convite da Associação Comercial Industrial e Serviços de Bragança