A vida também é isso: uma tragicomédia

Um dos grandes cantautores da música portuguesa dos últimos anos NERVE está de volta para se rir das (suas, nossas) amarguras de sempre (e das alegrias, já agora).

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Uma das primeiras frases soltas audíveis em “Deserto” dá o mote para todo o novo EP do abrantino NERVE, músico e dizeur que também se formou como designer em Lisboa: “E que tal… tragédia?”. É ela (tragédia) que vem marcando, com maior ou menor gravitas, aligeirada (ou, até, perversamente reforçada) pelo humor e o sarcasmo, a obra de NERVE, figura de de culto que, só depois de “'Trabalho & Conhaque' ou 'A Vida Não Presta & Ninguém Merece A Tua Confiança'” (2015), se afirmou definitivamente em termos de público. Não em termos de talento, pois esse há muito que lá estava – aliás, temos para nós que a sua magnum opus continua a ser o primeiro e prodigioso LP Eu Não Das Palavras Toco A Ordem (2008), seguramente incluído em qualquer lista dos melhores 10 discos de rap portugueses e, com não menos certeza, um dos mais singulares objectos da música portuguesa dos anos 2000. Com aquela frase, dizíamos, fica dado o pontapé de partida para tudo o que se seguirá, formal e materialmente falando: por um lado, os diálogos entre diferentes vozes/personas (do mesmo sujeito, NERVE, mas também como ecos dos seus fãs, esses que tanto motivam como torturam), sugestão da insânia que o acomete; e, por outro, o registo megalómano de um omnipotente demiurgo, se bem que, pedra de toque, sempre temperado pelo desespero e o fatalismo (“Nerve morre no fim” é um slogan seu) – “Auto-Sabotagem”, precisamente, ideia há muito cara à sua obra.

O músico recusa, porém, qualquer ideia de repetição ou circularidade: “Dito dessa forma, parece que todos os meus álbuns poderiam ter o mesmo nome, já que foi a mesma pessoa a fazê-los e não sofreu uma mudança de personalidade criativa de 180°. Sempre produzi o que me apeteceu e sem objectivos com a música além de querer deixar uma marca. Ainda faço o que me dá na telha, mas, tendo em conta o papel da música hoje na minha vida [pela primeira vez, vive exclusivamente dela], convém que o faça com a consciência do momento em que entro no domínio da auto-sabotagem. Não é só um impulso ou um inconsequente desabafo poético. É uma decisão consciente”.

Abençoado ruído

Digamos, então, que, se fosse um filme, “Deserto” seria uma punchline do neo-expressionismo alemão, segunda vinda de um Nosferatu (menos robótico, mais neurótico) à terra pela mão de um Murnau que o recebe com um “clarão e a cratera na terra”. Para quem não estiver familiarizado com aquele que é um rapper absolutamente idiossincrático no panorama português, representante de uma franja indie (mais do que nos meios, no estado de espírito e na “psicologia”) próxima de algum rap americano da primeira década dos 2000 (Aesop Rock, Sage Francis ou Atmosphere, cuja lendária figura demoníaca “Lucy Ford”, que muitos julgaram ser alusão a uma mulher, era, como em Nerve é, a sua própria consciência), encontrará no EP um excelente cartão-de-visita, na medida em que por ele perpassa todo o seu demencial universo: a depressão e a auto-comiseração, a soberba e o auto-enxovalho, o humor cartoonesco e a desconstrução de elementos da cultura pop, tal e qual um Marilyn (Monroe) (Charles) Manson. Juntam-se-lhes as mil e uma auto-citações e reenvios para canções suas anteriores (“Simone”, aliás, parece o “lado B” de “Diz”, dilacerante canção de um amor defunto que, pouco depois de lançada no YouTube, NERVE decidiu retirar): “Gosto de ‘mimar’ quem disseca a minha música. A ideia não é invalidar a possibilidade de um novo ouvinte conseguir absorver sem estudar a matéria anterior, mas, ainda assim, oferecer a um conhecedor uma recompensa por ter acompanhado o trabalho”.

Falámos em Manson e, se o seu disco anterior desenvolvia um tipo de sonoridade que trazia à memória Antichrist Superstar, essa linha é aqui mantida, se bem que aprimorada, com uma atmosfera (ainda) mais pesada, colossal, pela primeira vez inteiramente tocada (sem sampling) e produzida apenas pelo próprio, com recurso, entre outros elementos, a ruídos aleatórios posteriormente re-trabalhados (a que se juntam os preciosos arranjos de sax de Notwan). Frequentemente, aliás, e em virtude do protagonismo dramático (teatral) daquilo que é dito (que, por vezes, tem o inconveniente de retirar força ao texto, de o tornar menos perturbador, porque gongórico), tende-se a esquecer o quão virtuoso NERVE é na composição, electrónica trash, noisy, quasi-“metal” (“NERVE” provém de “Struck a Nerve”, canção dos Machine Head), que parece vinda de um putrefacto mundo de banda-desenhada surrealista – não por acaso, NERVE é também autor da artwork dos seus trabalhos, caso da capa escarlate do EP, na qual, à porta de uma enorme fachada, uma figura humana minúscula projecta a sombra um homem-diabo gigante (assim rimando com o refrão de “Chibo”).

Com a particularidade de os seus instrumentais – longe de serem “beats” no sentido mais convencional do termo – nem sequer se mostrarem, à primeira vista, como sendo “de hip-hop”, o que só prova o carácter desalinhado, rebelde, da sua criação. Música experimental? Sim, sem dúvida que há uma quota-parte dela aqui, nesta massa morta-viva, violenta, composta de linhas de baixo malignas e teclas clownescas, synths fantasmagóricos, baterias ora exaustas, ressacadas, ora mastodônticas e tonitruantes. Se, na primeira faixa de ENPTO, NERVE começava por dizer “Boa noite, estúpidos!”, o insulto ao ouvinte prossegue agora em “Plâncton”, com a particularidade de, aqui, a ego trip (recurso por demais comum no hip-hop) não ser utilizada apenas ao serviço do registo habitual (auto-engrandecimento, ostentação), mas, também, como rebaixamento do próprio.

NERVE despreza o ouvinte, sim – esse sempre à procura da erudição nas suas letras (como quando troça das “rimas toantes” em “Chibo”) –, mas despreza-se também a si próprio, justamente pelo facto de a sua criação se destinar àquele, o ouvinte que lhe dá de comer. Apesar de a tormenta estar aí para durar, o ouvinte que acompanhe NERVE desde o seu “nascimento” não deixará de sorrir, feliz por ele, pelo seu (nosso) apaziguamento possível (sim, apaziguamento, não há aqui busca alguma por qualquer ilusória redenção, ou, mais apropriado ainda, exorcização), quando lhe ouve aquele último verso em “Breu”: “A música não tem de ser feliz, nem eu / E é tudo ok”. Por outras palavras: “Já me perguntaram quando é que apresentaria algo menos negativo. Achei estapafúrdio. Quando é que chatearão o artista da moda, que só fala de amores felizes e sonhos coloridos, acerca de quando irá ele falar sobre aqueles dias em que acordas de manhã e só te apetece espetar um garfo no pescoço de alguém? É que a vida também é isso”.

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