Três anos e meio após colapso do Citius não se sabe o que parou os tribunais
Sistema informático dos tribunais tem 18 anos e serve 40 mil utilizadores entre juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça. Ministério da Justiça quer manter plataforma e utilizadores só reivindicam a sua substituição no prazo de cinco anos.
Três anos e meio após o colapso do sistema informático dos tribunais, o Citius, não se sabe o que esteve na origem dos problemas técnicos que levaram à quase paralisação dos tribunais durante 44 dias, no arranque do novo mapa judicial, em Setembro de 2014. A auditoria feita pela Inspecção-Geral das Finanças continua no segredo dos deuses e não chegou sequer ao Ministério da Justiça.
No início deste mês, a segurança do sistema informático dos tribunais, uma aplicação com 18 anos, voltou a ser posta em causa por causa do inquérito E-Toureira, que levou à prisão preventiva de um técnico que dava apoio informático nos tribunais e é suspeito de espiar, através do Citius, a evolução de vários inquéritos em segredo de justiça. Esse foi o motivo que levou o PÚBLICO a tentar perceber como está a funcionar o Citius, quais são as queixas dos seus utilizadores e que fragilidades apresenta.
Apesar de já ter tido várias sentenças de morte, o sistema que começou a ser instalado nas secretarias dos tribunais em 2000, persiste em resistir. O ministério destaca o “papel decisivo” do Citius e a importância no “aumento da capacidade e produtividade dos tribunais”, realçando que o sistema possui 40 mil utilizadores entre juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça.
O retrato feito pelos utilizadores e especialistas que avaliaram o Citius indica uma melhoria de algumas queixas frequentes há uns anos, nomeadamente a repetida indisponibilidade do sistema e a sua lentidão. Apesar da evolução que quase todos reconhecem, há problemas que se perpetuam: o sistema continua dependente de uma equipa de cerca de uma dezena de oficiais de justiça e engenheiros informáticos, já que continuam a não existir manuais de procedimentos e transcrições da programação. A pressão das actualizações e a construção de novas funcionalidades não deixa espaço para mais. Mas, muitas vezes, as mudanças não chegam aos utilizadores que se queixam da inexistência de formação.
Ao tentar desvendar as conclusões das últimas auditorias ao sistema o PÚBLICO esbarrou num muro de silêncio. Após o colapso do Citius foi anunciada uma auditoria independente que seria realizada pela Inspecção-Geral das Finanças (IGF). Os inspectores foram para o terreno só em meados de 2015, mas as conclusões da análise nunca foram conhecidas, não tendo sequer chegado ao Ministério da Justiça, como reconheceu a tutela do instituto que desenvolve e mantém o Citius.
Contactada pelo PÚBLICO, a IGF recusou-se a prestar qualquer tipo de esclarecimento sobre as eventuais conclusões ou recomendações da auditoria. “A Inspecção-Geral de Finanças não presta informações sobre as acções que desenvolve para além dos resultados publicados”, afirma a instituição. E acrescenta: “Nos termos da lei, apenas são divulgados resultados que não revistam natureza confidencial, após a respectiva homologação, anonimização de dados pessoais e a protecção de informação protegida pelo dever de sigilo”.
O PÚBLICO questionou a IGF sobre a base legal invocada para recusar qualquer tipo de esclarecimentos, mas a instituição nem essa informação disponibilizou. Também não esclareceu se terminou ou não a auditoria.
Já depois do colapso do Citius, a anterior titular da pasta da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, encomendou ao INESC-Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores uma avaliação sobre o Estado dos Sistemas de Informação da Justiça. O documento, segundo o presidente do INESC, José Tribolet, foi entregue nas últimas semanas do anterior Governo e, segundo o ministério, “não se encontrava ajustado às medidas que resultavam do programa do actual Governo”.
Mesmo assim o ministério liderado por Francisca Van Dunem garante que as “preocupações” identificadas na avaliação foram posteriormente aprofundadas e deram origem a um vasto conjunto de desenvolvimentos que estão a ser postos em prática no âmbito do plano de acção Justiça + Próxima. Mas, apesar de ter sido questionado sobre isso, não precisa quais foram as conclusões nem as recomendações do trabalho.
O juiz António Costa Gomes, que integra um grupo de trabalho para melhorar o sistema, reconhece valor ao Citius, um sistema criado por um pequeno grupo de oficiais de justiça com conhecimentos de informática. “Tem sido importantíssimo para a eficácia que os tribunais vão tendo. Sem ele estaríamos na idade da pedra”, resume o juiz. O elogio não lhe retira a capacidade para criticar um sistema informático que “usa uma tecnologia ultrapassada” e que “começa a não responder às necessidades”.
José Tribolet não tem dúvidas que será necessário construir um novo sistema de raiz, com uma arquitectura que resolva algumas das debilidades actuais. “Há aspectos essenciais da segurança dos sistemas que não estão contemplados nos sistemas actuais da Justiça”, afirma, sem entrar em pormenores. O presidente do INEC diz que faltam “atributos vitais” ao Citius, um problema comum a vários sistemas da Administração Pública. “É preciso existir um ou dois Pedrógãos para os altos responsáveis nacionais perceberem que a mudança a este nível é absolutamente urgente”, alerta, criticando a política de “biscatezinhos”.
A posição de António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, resume basicamente o que juízes, procuradores, advogados, funcionários judiciais e solicitadores acordaram no âmbito do pacto da Justiça. “Não queremos aventureirismo, nem programas feitos à pressa. As soluções milagrosas normalmente dão maus resultados”, sustenta. Por isso defende o desenvolvimento do Citius até ao limite das suas capacidades, excluindo a sua substituição num horizonte de cinco anos. Não ignora, no entanto, as limitações do sistema, que não faz, por exemplo, a comunicação com as polícias, nem está pensado para os magistrados. Lamenta que muitas vezes as novas funcionalidades não tenham impacto no terreno. “Não há formação nenhuma. É tudo na base do autodidacta”, constata.
António José Albuquerque, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, também considera descabido substituir o Citius neste momento. “A maior parte dos países europeus olha para o nosso Citius e pensa que temos um sistema moderno e altamente fiável”, garante. Este sindicalista nota, contudo, a falta de investimento nos equipamentos, sublinhando que são necessários computadores mais robustos. Sobre o Citius de hoje, garante que não tem nada a ver com o que existia há cinco anos. “O sistema está mais capaz e a segurança mais apertada”, acredita, lembrando que não há sistemas “infalíveis e impenetráveis”.
O antigo investigador Luís Vidigal, presidente da Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação, confessa que, mesmo com fragilidades, ainda teme mais o recurso ao papel. Lamenta que a Administração Pública tenha desinvestido nas novas tecnologia e acredita que a Justiça perdeu com a fusão do Instituto das Tecnologias da Informação na Justiça com o Instituto de Gestão Financeira e Infra-estruturas da Justiça, em final de 2012. “Houve uma desvalorização da função informática da Justiça”, considera.
Como Tribolet, Vidigal realça a actual concorrência desleal entre organismos da Administração Pública, com organismos como a Autoridade Tributária e a Segurança Social a pagarem mais aos técnicos, que vão sendo aliciados por melhor condições e outras hipóteses de progressão. O Ministério da Justiça desvaloriza e avança com números: dos 142 técnicos especializados em sistemas de informação que o IGFEJ tem ao seu dispor, nos últimos três anos saíram para outros organismos nove colaboradores.