Benjamin Clementine passeou a voz imponente pelo meio do público

O estado de graça de Benjamin Clementine intensificou-se em Lisboa. Já tinha conquistado festivais e salas de prestígio. Desta vez foi o lotado Campo Pequeno que se lhe rendeu, num concerto de celebração onde passeou a sua voz imponente pelo meio do público.

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Miguel Manso
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Foi tudo muito rápido. Em Junho de 2015 vimo-lo em Brighton, Inglaterra, sozinho, imerso num silêncio quase litúrgico, tímido, raramente se dirigindo ao público, apenas ele e o piano, “como se fossem um só”, haveria de descrever na entrevista que nos concedeu. Meses mais tarde, ainda um ilustre desconhecido para o grande público, estreia-se em Portugal, num dos palcos secundários do festival Super Bock Super Rock, num concerto que corre bem, mas seria em Dezembro desse ano no Coliseu, no contexto do Mexefest, que se selaria o culto.

Que aumentou muito desde então, regressando para mais festivais e minidigressões, actuando em salas de prestígio (do Coliseu de Lisboa à Casa da Música do Porto), ou no espectáculo do ano passado em Paredes de Coura. O que é interessante é que ao longo deste tempo quase nunca se apresentou no mesmo formato. Apenas ele e piano. Ele e um baterista. Ele e baterista e quarteto de cordas. Ele e baterista, guitarrista e baixista, enfim, uma série de soluções que vão sendo sempre recriadas. Esta semana, em Portugal, depois de Viana do Castelo e Figueira da Foz, apresentou-se esta quinta-feira num lotado Campo Pequeno, mais um degrau na demonstração da sua popularidade, com baixista, guitarrista, baterista e uma pequena orquestra de doze elementos que se mostrou a espaços.

O seu percurso tem sido ascendente não só em Portugal, claro – embora aqui se perceba uma relação especial – mas em toda a Europa (como o atesta a vitória no credível e importante prémio Mercury). Claro que a sua vida pessoal neste contexto também mudou. De um período há alguns anos em que as dificuldades relacionais e materiais o impeliram para uma existência muito precária, para o momento actual confortável, tendo sido pai há alguns meses fruto da relação com a cantora-compositora inglesa Flo Morrissey.

Vive um bom momento. É verdade que o seu segundo álbum (I Tell a Fly, do ano passado), do ponto de vista artístico e até de impacto público, não terá sido tão bem recebido quanto seria de esperar. É um álbum de sensações paradoxais. Por um lado prova que é mais do que uma voz sobrenatural capaz de expor canções confessionais, saindo de si próprio para reflectir sobre o estado da Europa, embora essa tentativa de dotar os temas de maior complexidade estrutural, acabe por contribuir para a diluição da sua maior força, essa expressividade vocal, precisamente.

Ao vivo esses dilemas acabam por estar presentes – é nítido que são as canções mais desnudadas, onde a voz e a intencionalidade emocional é mais precisa e clara, que acabam por conquistar – mas o seu estado de graça é de tal forma em Portugal nesta fase que tudo isso é esquecido. Mesmo as canções mais sóbrias do último álbum, que aludem à crise dos refugiados na Europa, acabam por perder parte da carga dramática, de tal forma deseja interagir com o público e vice-versa. Ou seja, nitidamente deseja celebrar este momento e o público também.

E foi isso que aconteceu no Campo Pequeno. Desde o primeiro momento, quando entrou em palco e a multidão lhe rendeu uma enorme ovação, com este a ajoelhar-se em sinal de devoção, que se percebeu que seria um espectáculo de rendição. Rodeado de manequins brancos em palco (figuras masculinas, femininas, grávidas ou crianças) e pelos três músicos, começou por acariciar o piano, descalço como de costume e envergando um xaile, interpretando várias canções do novo álbum (Farewell sonata, God save the jungle, Phantom of Aleppoville ou Jupiter), mas seria com uma mais antiga, I won’t complaint, que se veria o melhor de Clementine, com as notas de piano parecendo vogar em cascata, umas vezes próximo do silêncio, outras exuberante, alongando a destreza vocal até ao limite.

O próprio tem consciência que são as canções do primeiro álbum que mais apelam à assistência, dizendo às tantas, nas muitas interlocuções que foi mantendo com o público, que estão ali a tentar misturar as canções mais velhas e as novas, “embora saiba que estão aqui pelas mais antigas”. Ou seja, algumas das canções do álbum At Least For Now, de 2015, que povoaram o meio do concerto, como Winston Churchill’s boy, London – com o refrão várias vezes substituído para “Lisbon” – e principalmente Condolence, com ele e os seus músicos a colocarem a assistência a cantar em uníssono, num dos momentos mais emocionantes da noite, com a sua voz certamente a ouvir-se muito para lá dos limites do Campo Pequeno.

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Pelo meio existiram momentos performativos. A timidez foi-se. Hoje comunica incessantemente, é irónico até, destrói os manequins de plástico, ou percorre as bancadas com a sua banda atrás, imergindo literalmente no meio do público, para delírio deste, enquanto iam desfiando canções como By the ports of Europe ou Ave dreamer. Foi quase sempre assim ao longo de quase duas horas, teatral e excessivo, mas sem nunca pisar a linha vermelha da exibição gratuita de recursos.

E para o final houve mais canções que conseguem comunicar de forma directa com as emoções de quem o vê e ouve, através de Nemesis e Adios, e uma surpreendente incursão à guitarra, para evocar o massacre numa discoteca em Orlando, nos Estados Unidos, em 2016. Daqui a uns meses, a 21 de Julho, irá escalar mais um patamar na relação de devoção com Portugal. Será no contexto de um festival (o Super Bock Super Rock) que actuará na Altice Arena que irá certamente encher-se para cantar ao seu compasso.

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