Há cerca de alguns meses, um homem caiu em cima de mim. Refreiem-se os ânimos, por favor. Não estamos a falar de uma coisa boa. Acreditem que não estão tão desapontados quanto eu. Quis a vida que eu conseguisse um lugar sentada num daqueles comboios sobrelotados ao fim do dia, nos quais um simples lugar junto à janela é todo um oásis (apenas com menos água, zero vegetação e toda uma paleta de odores que o deserto evita por evitar o género humano).
Acontece que a cabeça do senhor que se encontra sentado à minha frente (e que tão tranquilamente dormia encostado ao vidro da janela), descai com violência, indo aterrar, qual melancia bombardeada por uma catapulta medieval, entre as minhas pernas. Juro, mas juro mesmo, que gostava de poder utilizar terminologia menos prosaica. Não obstante, esta é a única que encontro que me permite veicular o horror de nos depararmos com uma cabeça (indesejada) em tamanhas latitudes, ainda por cima inconsciente. Em vez de acordar com o impacto, como seria expectável, ficou ali, curvado sobre mim. Como se estivesse morto.
Naturalmente, tomei a atitude mais adequada e que melhor se enquadrava à delicadeza que o número de observadores e o contexto envolvente exigiam. Comecei a gritar como uma desesperada. Não, não foi aquele gritinho pueril de criança feminina que até é fofinho. Foi um daqueles berros contínuos de miúdo que entra na casa dos horrores e saí de lá com um susto para a vida. Daqueles em que não temos ar mas continuamos a gritar até ser só um gemido esquisito. E o pior é que não fiquei por aqui. Tentando enxotar a cabeça — mas, ao mesmo tempo, sofrendo de um certo medo irracional de tocar naquilo —, a minha reacção, de novo adulta e maturada pela sabedoria dos meus anos, foi ir deslocando o rabo para a cadeira do lado. Tudo bem, não fosse essa cadeira estar ocupada por um outro senhor que, vendo-se acossado por mim desta forma tão descarada, se viu obrigado a levantar-se e ceder-me amavelmente o lugar (isto antes que eu passasse directamente para o colo dele).
Neste momento consigo finalmente libertar-me da incómoda cabeça. O hemicorpo superior do homem permanece dobrado sobre o inferior, com ambas as mãos a roçar o chão. De novo, como se estivesse morto. Uma nova sensação de pânico volta a invadir-me quando as palavras “pessoa mais diferenciada” dançam a valsa alegremente na minha cabeça. Tenho de ver se esta criatura está a respirar. Quando estou prestes a aproximar-me, vejo movimentos dos braços. Com a languidez de um ocioso do século XVII e sem nunca abrir os olhos, o meu sujeito, ainda completamente dobrado sobre si mesmo, começa a recolher todos os pertences que deixara sujeitos à gravidade quando se projectou para o solo. Depois disto inclinou-se novamente para trás, apoiou a cabeça na janela e regressou ao estado inicial.
Agora sim, dou por mim a reparar no que se passa à minha volta. Rostos estupefactos, incrédulos. Mas não olham para este senhor que discretamente sonha com o que imagino serem nuvens de algodão doce. Olham para mim. Claro. Esta criatura não fez o menor ruído quando montou o seu espectáculo de terror para mim. Para os outros, o espectáculo fora eu. E agora, todos os espectadores me viam a mim, a culpada do crime de perturbação da ordem pública na qual se incluía aquele modesto senhor, ali a descansar. Só os meus outros dois companheiros — o que estava ao lado do meu sonâmbulo e aquele que eu violentamente expulsei do seu lugar — poderiam defender a minha honra e ambos estavam demasiado ocupados a rir da minha cara.
Pensei muito nisto depois, apesar daquilo que escrever esta história me provoca, sobretudo, ataques de riso convulsivo. A personagem principal nem sempre é aquela que é mais visível e essa foi das lições que levei comigo. Afinal de contas, alguma coisa boa teria de retirar desta pequena humilhação pública. Isso e o reforço vitalício da minha filosofia de evitar dormir em transportes públicos. Não vá acabar com a cabeça entre as pernas de algum desconhecido.