Ready Player One: Spielberg volta com os filmes e os jogos que nos salvaram

Ready Player One - Jogador 1 é o regresso de Steven Spielberg ao lugar de realizador-espectador, mestre das pipocas e das emoções profundas. É também um videojogo simplificado, uma colecção de referências nostálgicas da pop dos anos 80 e o olhar de um cineasta sobre si mesmo.

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OASIS é um espaço de realidade virtual onde só joga quem tiver ferramentas essenciais: um conhecimento fanático da cultura popular dos anos 1980/90

Steven Spielberg adora os anos 80. Foi neles que realizou e produziu muito do que o tornou nessa combinação rara de cineasta respeitado e popular. O Steven Spielberg do século XXI, porém, vive num equilíbrio mais periclitante quando se tenta divertir. Entre a solenidade de A Lista de Schindler (1993) ou The Post (2017) ficaram O Amigo Gigante (2016) e Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008) e ficou o próprio realizador, mais velho e mais responsável ou salteador da juventude perdida.

“Halliday disse um dia que preferia fingir que os outros filmes Indiana Jones, do Reino da Caveira de Cristal em diante, não existiam. Eu tendia a concordar”, diz o narrador do livro Ready Player One - Jogador 1, que Spielberg agora filmou, sobre uma espécie de geek supremo, James Halliday, e suas opiniões sobre a cultura popular e a cinefilia 80s que o livro explora exaustivamente. O filme Ready Player One - Jogador 1 eliminou essa crítica ao Spielberg do século XXI, e na verdade quase todo o Spielberg da sua história. E ainda assim, é um filme de Steven Spielberg. E um pouco sobre Steven Spielberg.

Indiana Jones e as suas demandas. A fuga do monstro Tubarão (1974), as aventuras de E.T. (1982). A trilogia Regresso ao Futuro, os miúdos de Os Goonies (1985), mais um monstro em Gremlins (1984), os mecanismos de Milagre da Rua 8 (1987). Como produtor ou realizador, Spielberg regressou ao local do crime. Filma Ready Player One com uma tecnologia que só agora acompanha os sonhos dos realizadores do CGI, filma uma aventura que tem por base uma amálgama de referências. “Absorvi as filmografias completas de cada um dos seus realizadores preferidos. Cameron, Gilliam, Jackson, Fischer, Kubrick, Lucas, Spielberg, Del Toro, Tarantino. E, claro, Kevin Smith”, diz no livro o narrador, Wade Watts - agora interpretado por Tye Sheridan na sua versão corpórea e que é Parzival, herói pobre mas esforçado de cabelos ondulantes como algas digitais quando assume a forma do seu avatar no OASIS.

O OASIS é um espaço de realidade virtual criado por dois jovens génios, que assim operaram uma revolução tecnológica ao desenhar um território onde décadas mais tarde (a acção passa-se em 2044 e 45) a população mundial vive após a quase destruição ambiental do mundo real. Uma cisão entre eles (Halliday e Ogden Morrow, interpretados por Mark Rylance e Simon Pegg) e a morte de Halliday criam um jogo, uma corrida mundial em torno de chaves mágicas e portais. O prémio é o controlo do OASIS, onde os avatares de milhões de pessoas (e uma empresa maldosa que quer poluir o mundo com publicidade e usa centros de fidelização como campos de trabalho) só jogam se tiverem as ferramentas essenciais: um conhecimento fanático da cultura popular dos anos 1980/90 que apaixonava Halliday.

No livro, isso é um festim de Jogos de Guerra (1983), Pac-Man e Dungeons and Dragons com duas figuras à la Steve Jobs e Steve Wozniak (os fundadores da Apple) em pano de fundo. No filme, passamos muito, muito tempo no OASIS de forma inesperadamente orgânica. Há referências aos jogos dos últimos anos, de Minecraft a Doom, e o T-Rex de Parque Jurássico (1993, o mesmo ano de A Lista de Schindler) ou o cubo Rubik (rebaptizado como cubo Zemeckis, como em Robert Zemeckis) fazem as suas aparições.

“Colaborar com Spielberg era um sonho da minha vida, agora concretizado”, dizia ao Ípsilon Ernest Cline, autor de Ready Player One - Jogador 1 (editado em 2016 pela Presença), durante a filmagem. As entrevistas em torno do filme mostram um Spielberg despreocupado e rejuvenescido: “A memória muscular de fazer estes filmes voltou na minha experiência a realizar Ready Player One e lembrou-me de quão divertido era, quando eu era um jovem realizador”, disse ao New York Times.

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A velocidade e simplicidade de Ready Player One (a frase que encetava muitos jogos de computador ou máquinas de salão de jogos) é um regresso aos prazeres e à simplicidade de quem foi criança ou jovem nos anos 80 Press/IMAGES/Getty Images

"Estou no assento mesmo ao vosso lado"

Uma das coisas mais interessantes de Ready Player One é o que Spielberg tem a dizer sobre Ready Player One. Quem foi Spielberg, quem é Spielberg, o criador de mundos de fantasia e de histórias sérias sobre a religião, a guerra, a história americana, agora a conduzir uma câmara ágil através de uma fantasiosa meditação sobre a prisão da nostalgia, o pântano da reverência fácil. Alguém que quer ainda que, “mesmo com todas as pipocas, um filme como Ready Player One” tenha “significado social”.

Spielberg ora quer focar-se na mensagem do filme - as pessoas “vão [para o OASIS] por tudo o que conseguem fazer mas ficam por tudo o que podem ser”, diz Wade Watts, mas a realidade é sempre melhor do que a realidade virtual, diz o fim do filme. Esse mundo de luvas hápticas e visores “vai ser a super droga do futuro”, diz realizador em entrevistas. Mas Spielberg também quer divertir-se. “Quando realizo um filme como este, estou no assento mesmo ao vosso lado. Significa que o faço para vocês. E a vossa reacção é tudo.” Foi o que disse quando foi recebido em quase apoteose há semanas na primeira apresentação do filme no festival South by Southwest, Texas. “Senti-me como se tivesse 10 anos outra vez!”, admitiu  ao New York Times.

Mas esse mundo que filmou vive então numa espécie de silêncio quanto a um dos seus pais, o próprio Spielberg. O paradoxo é ainda mais interessante quanto sabemos que o realizador apagou as referências a Spielberg do filme, mas que os designers de produção, aderecistas e cenógrafos tentaram introduzir algumas (um restaurante como o dos Fratelli de Os Goonies, um graffiti alusivo aos Gremlins) e ele as eliminou. Escreve a Entertainment Weekly que, numa pilha de livros num dado cenário, escapou à censura spielberguiana uma lombada com uma infantil referência mista ao “universo Spielberg” - um livro intitulado Schindler’s Ark. Essa fusão do cinema leve de Spielberg com o cinema que tanto pesa nos ombros responsáveis do realizador evidencia também como o cinema que não se leva a sério de Spielberg é a área em que o cinema de Spielberg tem dado menos alegrias ao seu público nos últimos anos. Os títulos americanos perguntam-se: “Spielberg ainda se lembra de como se divertir?”, “Spielberg conseguirá regressar à glória de E.T.?”.

Spielberg responde: “Nos meus primeiros filmes, de Tubarão a E.T., estava a contar a história a partir do lugar do espectador na sala de cinema – do público, para o público – e já não faço isso há muito tempo. Na verdade, não o faço desde Parque Jurássico e isso foi nos anos 1990.” Entra o T-Rex para comer um monte de veículos em excesso de velocidade em Ready Player One, entre os quais um DeLorean como o de Regresso ao Futuro (e como o de Ernest Cline, que comprou um dos poucos carros do género existentes no mundo) e o Batmobile de 1966.

Porquê? “Porque sou mais velho. Agora sinto uma responsabilidade mais profunda por contar histórias que tenham algum tipo de significado social. Se puder escolher entre um filme que é 100% para o público e um filme que diga algo sobre o passado – que tenha impacto em mim ou que eleve uma conversa que pode estar esquecida, como com Munique – escolherei sempre a história acima da cultura popular.”

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Ready Player One é um regresso ao futuro - um futuro preso nas areias movediças da nostalgia, um devir que pondera as consequências negativas da tecnologia glorificando “a década que mais adorou a diversão”, como a descreve Spielberg

It’s fucking Chucky!”

Ready Player One é uma ponderação febril sobre a realidade virtual povoada pelo som dos Twisted Sister e t-shirts (sem letras) de Unknown Pleasures, pela mota de Akira ou pelo Iron Giant de Brad Bird, girando num mundo em que a sala rebenta a rir quando alguém constata “It’s fucking Chucky!” - sim, o boneco assassino dos pesadelos dos miúdos 80s.

Faz parte da história de Ready Player One, mesmo antes de se estrear, que Spielberg achava que este era um filme que exigia um realizador mais jovem. Acabou por ser um filme para o realizador que em 1974 jogava Pong com Richard Dreyfuss na rodagem de Tubarão. E acabou por ser “o terceiro filme mais difícil" que já fez, "a seguir a Tubarão e O Resgate do Soldado Ryan (1998), nessa ordem”, disse ao Los Angeles Times.

A velocidade e simplicidade, para o bem e para o mal, de Ready Player One (a frase que encetava muitos jogos de computador ou máquinas de salão de jogos) é um regresso aos prazeres e à simplicidade de quem foi criança ou jovem nos anos 80. É nostalgia pronta a servir sobre os filmes, os jogos e os livros que nos salvaram.

A história de como os nerds e os geeks tomaram conta de Hollywood e da cultura actual já foi mil vezes contada. Ernest Cline é um dos seus cronistas e Ready Player One um dos seus testamentos em livro. Spielberg foi “muito cuidadoso para se manter fiel ao seu espírito, fazendo as mudanças necessárias para o adaptar”, disse o autor ao Ípsilon no Natal de 2016 - e há mudanças significativas. Mais não se diz, porque se há coisa que Cline, que com o seu livro e filme Fanboys ousou perguntar “e se Star Wars: A Ameaça Fantasma não for bom?”, enfatiza num email ao Ípsilon é: “Por favor abstenha-se de incluir quaisquer spoilers no seu artigo!”.

Ready Player One é um regresso ao futuro - um futuro preso nas areias movediças da nostalgia, um devir que pondera as consequências negativas da tecnologia glorificando “a década que mais adorou a diversão”, como a descreve Spielberg, que se ocupou de a preencher com histórias e gente. “Não era de todo uma década cínica.”

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Spielberg omnipotente

Para Cline, essas histórias, dos filmes de John Hughes ou dos easter eggs dos jogos, foram como a Bíblia, ou como mitos fundadores da cultura. “Quando escrevia o livro pensei na cultura popular como algo semelhante à mitologia nos filmes Indiana Jones. Podemos não saber muito sobre o Santo Graal ou a Arca da Aliança ou quanto disso é verdade, mas sabemos o suficiente para saber quem são os bons e os maus e por quem torcer”, explica ao Los Angeles Times o escritor, que assina o argumento com Zak Penn (O Último Grande Herói, Os Vingadores). Mas os contributos do apóstolo Spielberg estão ausentes, do reparo ao quarto Indiana Jones - “essa piada sobre o Reino da Caveira de Cristal está almofadada em adoração pura pela obra dele”, garantia Cline ao Ípsilon, dizendo que o realizador nunca mencionou essa linha do livro - a E.T. “O seu trabalho foi uma das principais inspirações para Jogador 1”, sublinhou o autor.

Um grande narrador visual, omnipotente, Spielberg apagou-se quase totalmente da história que conta. Queria “cortar pelo menos 70% das minhas próprias referências culturais. Porque senão ia ser como embonecar-me em frente a um espelho e eu simplesmente não ia permitir isso a mim mesmo. Orgulho-me da minha modéstia. Mas eu fui parte dos 80s e sei disso. Sou suficientemente objectivo quanto ao meu próprio trabalho e quanto ao passado para saber que seria um pecado cortar o DeLorean e o T-Rex”, explicou ao Los Angeles Times.

Manteve-os ao serviço deste filme-jogo que quer que reflicta sobre a necessidade de fugir à dura realidade. “O escapismo é uma coisa que as pessoas desejam mais do que nunca, especialmente hoje, só para fugir do ciclo noticioso deprimente.” Mas não se esquece, não se deixa abstrair.   

Neste regresso de Spielberg ao lugar de realizador-espectador, mestre das pipocas e da tentativa de emoções profundas, o horror à vaidade junta-se ao terror dourado do saudosismo. “Tenho esta imagem assustadora, que me assombra, de Gloria Swanson sentada na sua sala a ver os seus dias de glória” em Crepúsculo dos Deuses (1950), confessou ao New York Times. “E sempre disse a mim mesmo ‘Nunca me apanharei a recordar velhas histórias de forma nostálgica’.”

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