Carta a D. Duarte Pio
O que deveria existir na Casa Real, perante o mundo de hoje, em pensamento e em ação?
Passam, neste março, 210 anos da chegada da Corte portuguesa ao Brasil. Esta efeméride provocou em nós uma leitura sobre a dinastia de Bragança desde esse tempo, enquanto provocadora da cessação “imperial”, iniciadora do constitucionalismo monárquico, autorizadora da última grande contenda fratricida.
Desde a morte de D. Manuel II que as questões da sucessão não param de se colocar. Tal circunstância, mesmo que se limite a movimentos que vão até aos sucessores de D. Miguel ou de Dª Ana de Jesus Maria, não deixa de interessar aos portugueses, a todos os que se implicam no olhar sobre a História. Não é indiferente que se assuma em D. Duarte a chefia da Casa Real ou que se questione se o Duque de Loulé é o verdadeiro Senhor.
Portugal, como todos os países, conheceu os mais frescos regimes em tempos destes dois últimos séculos, mesmo que, por épocas mais antigas, as repúblicas tivessem sido eleitas em formatos variados. Neste nosso retângulo europeu adotámos há mais de um século a eleição do mais alto magistrado por uma via direta ou indireta, não havendo mais lugar à hereditariedade do posto.
Esta circunstância chega, para muitos, provavelmente para a esmagadora maioria, para colocar um ponto final na questão do regime, para não autorizar qualquer outra discussão sobre o regresso a 4 de outubro de 1910. A nossa perceção é também essa. Por agora, o país não tem agenda para esse debate, não tem tempo para o incorporar, não vislumbra necessidade de o poder atender.
Há, perante a circunstância, duas atitudes a tomar. A primeira é de transformar a História em memória e por aí ficarmos; a segunda, a de continuar a fazer História em cima da memória.
Este pensamento sobre História e memória provoca-nos no encontro de respostas para a inclusão do herdeiro da Coroa portuguesa na vida política e cívica dos tempos que vivemos. E chegado aos questionamentos não achámos os sinais que esperávamos.
O processo de eclipsação das monarquias, em todos os países onde ocorreu, manteve uma linha de atenção mediática, política e social à Casa Real. Infelizmente, em Portugal, essa linha não se retém, não se identifica. Dirão muitos, dos que militam na Causa, que o Senhor D. Duarte recebe, dos portugueses e por onde passa, um respeito e uma consideração genuínos, uma atenção comovente. Mas, sendo verdade, tais circunstâncias não colocam a Casa Real portuguesa no ponto de uma representação que se lhe devia garantir e exigir.
Já escrevemos, por vezes várias, que o movimento monárquico português é do mais atávico que se pode encontrar no continente a que pertencemos. Ganho pelas causas do passado, preocupado pela perda das relevâncias de outros tempos, incapaz de se assumir pedagógico, próximo e preocupado, os monárquicos não se elevam perante as novas realidades sociológicas, fixam-se em linhas fósseis, por vezes reacionárias, de comportamento humano.
O Senhor D. Duarte Pio é, na sua simplicidade, em tudo diferente do estereótipo que identificamos, separa-se da generalização que descrevemos. Mas esse seu ser não chega para fazer do movimento monárquico mais do que a naftalina com que se guardam os trajes, as bandas e as proclamações anciãs.
O que deveria existir na Casa Real, perante o mundo de hoje, olhando as responsabilidades que o país assume, a nossa realidade de integrante europeu sem deixar de ser mundo e língua e sem esquecer que foi mar, em pensamento e em ação?
Há várias linhas de abordagem que importaria calcular. A primeira linha é a que se liga ao pensamento monárquico. Que razões levam a que realidades políticas como a francesa ou grega encontrem na sua sociedade agendas assumidas pelo chefe da Casa Real e tal não aconteça em Portugal? O que impede que o Senhor D. Duarte se assuma num programa político claro, genuíno, que, partindo da nossa realidade, motive Portugal e os portugueses?
O municipalismo, a língua e a ecologia tiveram, em tempos idos, uma opinião monárquica. Hoje ela quase desapareceu. Mas a construção europeia, as desigualdades, a tecnologia, a sustentabilidade, temas graves que estão na ordem do dia, não encontram um pensamento de quem herdou a História entre a fundação e a república. Uma carta política é o que falta.
A segunda linha é a da representação. Quem são os monárquicos portugueses? Que representação social nos concedem? Que respeito nos merecem perante o exemplo cidadão, o empenho político público? Ora, o que se revela de essencial é a conjugação de agendas monárquicas com as agendas mais integralistas dos anos de 1940, uma ausência de modernidade perante a vida e perante os media, uma insignificância na formação de opinião que faça seguir, pelo exemplo, vastos universos de portugueses.
Os monárquicos portugueses não precisam de se munir de nostalgia para se justificar no tempo atual, não carecem de portugalidade certificada por anais concedidos em inobservância da história positiva. Uma opção pela historiografia acéfala é a eliminação da boa memória.
A terceira linha é a partilha. Olhemos para os universos relevantes da nossa sociedade. Quem se afirma monárquico na justiça, nas universidades, nas empresas grandes e inovadoras? Quem se sabe comportar perante o cosmopolitismo exigente que nos transporta para o global da decisão? Ninguém tem o direito de se pronunciar sobre a vida e a felicidade do outro. Porém, quando olhamos o Senhor D. Afonso, Príncipe da Beira, assumindo a primeira das varas do pálio em procissão do Senhor dos Passos, a pergunta é simples — não deveria a armada portuguesa assumir este príncipe como seu? Não poderia a marinha honrar-se, com a sua alva farda, na escolha de “Dinis”, nome igual ao rei seu fundador, para que a História se consagrasse?
E nesta linha, não seria possível que a Infanta Maria Francisca se assumisse na frente inovadora dos portugueses olhando as empresas exportadoras, as start-up, dando dimensão à economia social? E também não seria possível que as famílias herdeiras do património honorífico da antiga nobreza portuguesa (a existir ainda em ética e dignidade) se afirmassem mais pelo empenho coletivo e menos pela comunhão de capas insignes da Soberana Ordem de N. Senhora de Vila Viçosa?
A normalização da opção monárquica assume-se, por isso, de consagração difícil. E, como qualquer espírito livre, que não se dá bem com sentidos únicos, consideramos que a desistência do debate sobre o regime é, também, uma carência. Por agora há pouco a fazer. Para amanhã não se preveem melhoras. Parlamentar português e doutorando em História FL-UL
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico