Da guerra do gás à ciberguerra, o método de Putin é o mesmo. Mas não é infalível
O que vai fazer Putin? Recuar ou, pelo contrário, tentar uma fuga para a frente? O que faria a NATO se a Rússia interviesse numa das repúblicas bálticas? É a altura de prevenir, antes de ter de remediar.
1. Em primeiro lugar, é preciso lembrar aquilo que aconteceu no Reino Unido. Não foi um caso idêntico de envenenamento de um antigo espião suspeito de actividades contra a Rússia. Há quase dez anos, Alexander Litvinenko foi envenenado com polónio, igualmente em Londres, porque se preparava para denunciar o assassinato em Moscovo da célebre jornalista Anna Politovskaya, com as suas reportagem sobre a brutalidade da guerra na Tchétchénia, que Putin levava a cabo. Nem sequer é um caso idêntico aos que aconteciam durante a Guerra Fria, com o assassinato de “traidores” com uma simples injecção letal. É outra coisa. Pela primeira vez, a Rússia utilizou uma arma de guerra absolutamente proibida na lei internacional e incluída no conjunto das armas de destruição maciça: químicas, biológicas e nucleares. O agente químico utilizado, mesmo que numa quantidade ínfima, teve de ser transportado para território britânico. A mensagem de Putin foi clara: a Rússia tem capacidade para o utilizar numa dimensão muito maior. Representou uma escalada na ameaça latente que o Presidente russo tenta manter sobre a Europa, com o objectivo duplo de alimentar o medo e provocar a divisão.
É essa a sua estratégia e é a essa luz que é preciso perceber o que se passou no Reino Unido para levar a Europa a uma resposta tão dura e praticamente unânime. O método é sempre o mesmo. Só varia a arma que utiliza. Em 2006, mostrou que podia pôr a Alemanha ou a Polónia a morrer de frio. Bastou para isso encontrar um pretexto para cortar o gás à Ucrânia, acusando-a de não querer pagar o gás aos preços internacionais. O gasoduto era o mesmo que trazia o gás para a Europa Central. O objectivo era levar os países europeus a reconsiderar o seu apoio à “revolução laranja” pró-ocidental, desencadeada em Kiev em 2004. A Ucrânia, nos cálculos de Putin, faz parte da sua zona de influência, um conceito que tinha desaparecido no pós-Guerra Fria e que o Presidente russo recuperou. A Europa começou a pensar duas vezes sobre a sua dependência energética da Rússia.
No Verão de 2008, Putin invadiu a Geórgia, ocupando (até hoje) a Abkhazia, com o argumento de que a maioria da população era russa e estava a ser discriminada pelo governo pró-ocidental. Nicolas Sarkozy, que detinha a presidência do Conselho Europeu, viajou até Moscovo e Tbilisi, arrancando um acordo que nunca se percebeu totalmente e que, aparentemente, tinha duas versões: uma para a Rússia e outra para a Geórgia. A questão foi esquecida.
De novo, foi a aproximação da Ucrânia à União Europeia, através da negociação de um acordo de associação em 2014, que levou Putin a agir. Proibiu o Presidente ucraniano de assiná-lo, praticamente na véspera. Foi a reacção de milhares de jovens em Kiev e noutras cidades que levou directamente à intervenção russa na parte Leste do país e à anexação da Crimeia. Putin infringiu a lei internacional sem qualquer problema. Apesar dos acordos de Minsk, negociados por Angela Merkel e François Hollande, a situação mantém-se. A diferença foi que, desta vez, a Europa não se dividiu nem paralisou, como o Presidente russo contava. Merkel liderou com Obama a reacção. Percebeu que a Rússia era uma ameaça à segurança europeia e tinha de ser tratada como tal. A Europa seguiu. Putin acabou por perder a parada. As sanções impostas pela União e pelos EUA (mais as contra-sanções) custam hoje à Rússia cerca de 1,5% do crescimento do PIB, por sinal a rondar o zero nos últimos anos.
2. Entretanto, a guerra do gás foi substituída pela ciberguerra. São hoje evidentes na América ou na Europa as constantes interferências russas para manipular eleições a seu favor. Também aqui, Putin tem como objectivo mostrar que pode ir muito mais longe do que a influência eleitoral, por exemplo, interferindo no funcionamento das grandes infra-estruturas. “O que está em causa é muito sério”, escrevia Alina Polyakova, da Brookings Institution, no dia 22 de Março, lembrando uma sucessão de ciber-ataques nos EUA, patrocinados pelo Kremlin, incluindo a sectores críticos como a energia, o nuclear ou a aviação. “Os instrumentos ainda são rudimentares”, diz a mesma investigadora. Avisa, no entanto, que não é de excluir um ataque com outra dimensão e eficácia. Os EUA e a Europa estão mal preparados para enfrentar esta nova arma de “desinformação online”, “quanto mais um ataque que vise as infra-estruturas fundamentais”.
3. Mais uma vez, Putin não previu a reacção europeia. Acreditou que o Reino Unido, com o "Brexit", não mereceria a solidariedade dos seus pares europeus. Enganou-se. As conclusões do Conselho Europeu de sexta-feira passada garantem “solidariedade total ao Reino Unido, face a este desafio grave à segurança comum”. O Presidente russo talvez tenha interpretado mal as felicitações de alguns líderes europeus (do Presidente alemão ao presidente da Comissão) pela sua reeleição, que suscitou, de resto, bastante polémica. “Seria melhor, em matéria de segurança a longo prazo, que a União Europeia e a NATO mostrassem agora a sua determinação em defender os seus valores e os seus interesses, em vez de agirem como se a reeleição de Putin tivesse posto o cronómetro a zero, apagando aquilo que fez em casa e no estrangeiro”, escrevia Ian Bond, do Centre for European Reform de Londres, dias antes da retaliação concertada de 22 países ocidentais.
4. Falta agora esperar pela reacção de Moscovo, que não deve tardar. Vai ser preciso coordenar uma resposta na previsão de uma escalada. Mas, uma vez mais, Putin enganou-se totalmente nos seus cálculos, ainda por cima numa altura em que o populismo ganha terreno na Europa, sem esconder o seu apreço pelo “homem forte” que lidera a Rússia. Se há medida da força política da União Europeia perante o seu grande vizinho de Leste, ela foi ontem dada pela Hungria, cujo governo é amigo de Putin e não aprecia a democracia liberal, ao juntar-se ao movimento de expulsão de diplomatas russos. A explicação talvez seja simples: a Europa continua a ser o seu melhor passaporte para a estabilidade e o desenvolvimento.
Ian Bremmer escrevia na Time americana, a 22 de Março, que “enquanto Putin quer que o mundo o veja como um líder forte e determinado, são muitas as vezes em que não consegue compreender o impacte total das suas acções”. Bremmer também diz que ele “não compreende a democracia americana” e, por isso, sobrestimou Trump e a sua prometida amizade. O que vai fazer Putin? Recuar ou, pelo contrário, tentar uma fuga para a frente? O que faria a NATO, se a Rússia interviesse numa das repúblicas bálticas? É a altura de prevenir, antes de ter de remediar.