Linha do Leste: Sejam bem-vindos à "viagem dos rabos amachucados"

São 146 quilómetros de paisagens deslumbrantes, estações ferroviárias devolutas e de anseios de populações cada vez mais isoladas. Um passeio que vai desde o Entroncamento a Badajoz e que mostra as assimetrias internas e, sobretudo, externas.

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Estação de Vale do Peso, no distrito de Portalegre, que integra o ramal de Cáceres Pedro Cunha

Há locais onde ver passar o comboio ainda é uma distracção, quase uma novidade. É assim ao longo dos mais de 146 quilómetros da Linha do Leste, via ferroviária que começa no Entroncamento e, depois de atravessar diversos concelhos do distrito de Portalegre, acaba em Badajoz. É a sobrevivente das linhas férreas do interior alentejano. Uma via que foi inaugurada em 1863 e que hoje tenta sobreviver com uma média de três dezenas de passageiros transportados diariamente em duas viagens (ida e volta) por uma automotora que iniciou o trabalho no distante ano de 1954.

“Se fizesse uma corrida nas subidas com o Elevador da Glória [em Lisboa], o elevador ganhava. E com grande avanço”, ironiza um jovem estudante que, a meio da tarde de domingo, inicia mais uma viagem desde Elvas até Lisboa. É que a velha automotora Allan - movida a gasóleo, porque a Linha do Leste não está electrificada – parece mancar e quase se engasga a cada barreira que tem de ultrapassar. Recupera depois algum terreno nas descidas, chegando por vezes a ultrapassar os 90 quilómetros/hora. Mais de duas horas depois de ter partido de Badajoz, há-de estancar no Entroncamento, onde inúmeras composições se encarregarão de levar as pessoas para todo o país. “É como se tivéssemos chegado de outro mundo”, diz o mesmo estudante.

“O que isto tem de bom é que permite observar a beleza do Alentejo”, afirma Maria do Rosário, outra das passageiras de fim-de-semana. “Aproveitei para fazer uma viagem que já não fazia há anos. Fui às compras a Badajoz… Aiii, aquilo é um mundo! Se calhar, como Lisboa ou ainda melhor. Tem de tudo. Lojas, restaurantes, muitos supermercados… Mas nós aqui temos esta paisagem linda…”, diz, ao mesmo tempo que estica um dedo até ao vidro e aponta para uma das muitas manadas de vacas que por esta altura do ano, aproveitando as chuvadas das últimas semanas e o renascimento das pastagens, dão ao campo a vida que os humanos, por rarearem, já quase não emprestam.

Vacas. Muitas vacas. Ovelhas, também muitas. O montado a perder de vista (Portugal produz cerca de um terço da cortiça mundial, sendo o Alentejo o principal alforge de sobreiros). Ao longo da via avistam-se, junto a cada caminho de terra batida que a atravessa, os destroços das antigas casas da guarda. As casas onde há anos viviam famílias numerosas, onde homens e mulheres, de bandeirola na mão sinalizavam a passagem dos comboios, mudavam alguma agulha ou abriam e fechavam alguma cancela. Agora restam os telhados caídos no chão e os ninhos de cegonha empoleirados no que resta das paredes.

Abandono completo

O rasto de destruição do casario, sobretudo do que estava associado à linha férrea repete-se ao longo de toda a Linha do Leste. Quem entra no comboio no Entroncamento pode comprar o bilhete nesta estação. Depois, para encontrar uma gare a vender ingressos, só mesmo em Abrantes (onde se inicia a Linha da Beira Baixa e, por isso, com um tráfego muito mais intenso). Tudo o resto são recordações. Há estações que não possuem qualquer serviço. As portas e janelas dos magníficos edifícios de outrora estão agora emparedadas. Há lixo, pichagens, ervas a crescer descontroladas. Não há electricidade, água, sanitários. Não há gente, excepto algum mais temerário utente dos comboios que se aventure a apanhar uma valente chuvada para conseguir viajar. Até em Ponte de Sor, Portalegre (capital de distrito) e Elvas (as três únicas cidades do distrito) não há vestígio de qualquer actividade nas instalações. No Crato, onde terminava o primeiro troço da via (1866) repete-se a imagem de outros concelhos: Abandono. Na estação da Torre das Vargens, onde antes se fazia o transbordo para o já extinto Ramal de Cáceres (a segunda ligação a Espanha que existia na região), também não se vê vivalma. “Vão longe os tempos em que todas estas estações e apeadeiros estavam cheias de gente. Muitos eram ferroviários e viajavam de borla, mas sempre havia vida”, diz o revisor do comboio, lamentando ao mesmo tempo que a circulação na parte portuguesa se faça a gasóleo, enquanto que em Espanha, a partir de Badajoz, a via está apetrechada com composições modernas.

“Esta é a viagem dos rabos amachucados”, diz, ao chegar à estação de Santa Eulália, Vânia, uma jovem espanhola que, acompanhada do namorado vai até Lisboa. “Já é a segunda vez que faço esta viagem. A paisagem é muito bonita, mas o comboio [uma única composição que, nos melhores dias – às sextas e domingos – chega a transportar mais de duas dezenas de passageiros] é muito lento e desconfortável. O que vale é que também é muito barato [18,25 euros]”.

Há quem defenda, nos vários concelhos atravessados pela via férrea, que a CP poderia rentabilizar o negócio criando uma espécie de transporte turístico em parceria com as câmaras municipais. No distrito de Portalegre são vários e de nomeada os festivais de Verão que levam a algumas localidades dezenas de milhares de forasteiros. António Bernardo, residente em Portalegre e, conforme diz, “viciado em Badajoz”, acredita que o aproveitamento turístico da região terá de se fazer em parceria com as transportadoras, nomeadamente a CP, e também com as poucas unidades hoteleiras que existem. “Sem transportes, as terras, que agora estão quase mortas, acabam por desaparecer. Morre o comércio, porque a indústria é pouca ou nenhuma, e fica tudo para as vacas e para os javalis”, diz.

Apesar das más condições nas estações e do ar “século XIX” do material circulante, a verdade é que a situação do transporte ferroviário no distrito de Portalegre já foi bem pior. A 1 de Janeiro de 2012 a Linha do Leste encerrou todo e qualquer serviço de passageiros. As estatísticas, de 2010, demonstravam então que a média diária de passageiros era irrisória, sendo que nesse ano a CP transportara na zona apenas 28.164 pessoas. O prejuízo então acumulado, segundo revelou a empresa, rondou os 1,2 milhões de euros.

O fecho da linha causou então grande indignação entre as populações e foram vários os municípios que se uniram para, em conjunto com os deputados do distrito na Assembleia da República, reivindicarem o regresso do comboio.

As reclamações haveriam de dar resultado e, em Setembro de 2015, as velhas automotoras Allan (do modelo de 1954 que haveria de sofrer transformações em 2000 restam apenas quatro das 21 composições, duas na Linha do Leste e outras tantas na do Oeste) voltaram a transportar passageiros, apenas à sexta-feira e ao domingo, entre as estações de Abrantes e Portalegre. Em Agosto do ano passado a CP condescendeu aos inúmeros pedidos e o serviço passou a fazer-se diariamente entre o Entroncamento e Badajoz. Uma vitória quase completa para os alentejanos do distrito de Portalegre. Quase, porque na velhinha Linha do Leste, efectuada esta última remodelação, ficaram a ver os comboios a passar (sem qualquer utilização das suas instalações) os apeadeiros de Fazenda e Aldeia da Mata, sendo que nesta última localidade, terra de tradições ferroviárias, há diligências para que a gare volte a ser local de embarque e desembarque, uma vez que serve não só o concelho do Crato como o vizinho município de Alter do Chão.

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