Um nome para não esquecermos: Luís Figueiredo

Após cinco anos a acumular ideias avulsas, o pianista encontrou-lhes um abrigo comum sob a temática do tempo. Kronos/Penélope é um ambicioso álbum conceptual, em que toca com 15 formações diferentes. Já ninguém faz discos assim. Para nossa sorte, isso não o deteve.

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Foi ao ler o neurologista Oliver Sacks que Luís Figueiredo primeiro começou a aprofundar um fascínio pela amnésia que havia de ocupá-lo durante um período fundamental da composição do álbum Kronos / Penélope. E interessou-se sobretudo pelo caso singular de Clive Wearing, descrito no livro Musicofilia, um antigo produtor da BBC e respeitado músico que, em 1985, se viu atacado por um vírus causador de poucos cuidados numa situação normal, mas que no seu caso degenerou numa encefalite tão grave que o atirou para um estado de coma e produziu danos permanentes no cérebro. A consequência foi o desenvolvimento de uma condição chamada amnésia anterógrada, em que um indivíduo se torna incapaz de produzir novas memórias.

Embora se tenha dedicado à leitura sobre diversos tipos de amnésia, o pianista aprofundou as suas pesquisas sobre Wearing, viu dois documentários sobre a sua condição particular distados de 20 anos e enredou-se numa série de relatos sobre aquele caso e outros semelhantes. Na mesma altura, aconteceu rever Memento, o filme que popularizou o realizador Christopher Nolan, e cuja personagem principal é um homem que sofre dessa mesma doença, parecendo, por isso, condenado a recomeçar a partir do mesmo momento, tendo de deixar pistas para si mesmo sobre o que terá acontecido nos dias, nas semanas, nos meses anteriores. Tudo isto seria de total irrelevância, não fosse Luís Figueiredo ter transportado o seu “fascínio com a ideia da amnésia e da incapacidade de criar memórias passadas ou futuras – consoante o tipo de amnésia” para o disco em que então trabalhava.

E isto porque, em 2017, quando percebeu que estava na altura de gravar um sucessor para Lado B (2012), Luís escancarou as “gavetas” onde enfiara uma chusma de composições, em estado avançado ou apenas em esboço, e foi percebendo que se insinuava de forma clara, nesse conjunto de ideias mais ou menos avulsas, uma temática que lhes poderia oferecer um abrigo comum: “um fio condutor que tinha que ver com o tempo, com a ideia de desgaste e de passagem do tempo, com várias facetas ligadas à palavra e ao conceito, incluindo memória e esquecimento.”

Tratando-se de um álbum quase exclusivamente instrumental – em que até a voz de Rita Maria é tratada como parte do naipe de sopros –, a temática escolhida por Luís Figueiredo não obedece a qualquer abordagem programática, destinada a enviar com aviso de recepção uma mensagem inequívoca para quem está à escuta. É algo, portanto, da ordem do “sensorial” e “profundamente subjectivo”, reconhece o próprio. “Só que tratando-se das minhas composições, quando pego nelas e as toco, essa experiência sensorial conduz-me para certo tipo de temáticas”, diz. “E a verdade é que havia peças que eram sobre o tempo de uma forma muito explícita, algumas até do ponto de vista técnico – como lidar com o tempo, maneira de manipular o tempo, etc.” É essa a razão pela qual uma audição atenta pode desvendar pormenores como vozes ou baterias em reverse, resultado da mão do músico a brincar com essa regra que nos lembra, a cada instante, que a marcha cronológica é inclemente e não pode ser contrariada.

O tempo, de uma forma mais declarada ou dissimulada, faz-se anunciar em cada um dos temas de Kronos / Penélope. Desde logo, quando o primeiro trecho da Kronos suite, The years shall run like rabbits, avança com acordes, aos solavancos, de um piano que traz um rasto de Pyramid song, dos Radiohead – que, por sua vez, se baseava em Freedom, de Charles Mingus –, para em seguida avançar por uma modorra feita de um lirismo que poderíamos dizer herdeiro de Mário Laginha (uma das duas grandes referências pianísticas de Luís Figueiredo, sendo a outra Keith Jarrett), baptizada Mnemosyne, nome da deusa da memória de acordo com o panteão da mitologia grega.

A história de Clive Wearing (voltemos a ela) tem uma consequência mais directa em três momentos espalhados pelo álbum, nomeados como Retrograde Amnesia, e que dizem respeito a um dos extremos do espectro do disco. Ou seja, se nalguns momentos, como Tous les matins du monde, a música de Luís Figueiredo se acerca de uma natureza camerística, seguindo a cada compasso uma partitura escrita com um plano claríssimo de como a música deveria soar na sua forma final, noutros o pianista quis apontar para uma zona totalmente desprotegida, de improvisação livre, numa tentativa de “representação simbólica de uma determinada amnésia”.

Tratando-se, naturalmente, de uma aproximação teórica, aquilo que pediu aos músicos foi que se predispusessem ao máximo “a esquecer aquilo que se tinha passado naquele dia de gravação e as conversas tidas sobre o disco”. “Para aumentar um pouco o grau de aleatoriedade do resultado”, complementa, “fazia sessões no final de cada dia com toda a gente que estivesse no estúdio. Gravávamos o que tínhamos a gravar e quem estivesse fazia cinco takes de improvisação. Houve coisas que achei incríveis, e ficaram no disco, houve outras em que não se passava nada de especial. Mas tivemos formações estranhíssimas nessas improvisações, desde um trio convencional – que funcionou bastante bem – até septetos e octetos, com dois contrabaixistas ao mesmo tempo, noutro dos casos que também ficou e que surge colado a um sample dos Talking Heads.” Essas gravações, no entanto, sobreviveram apenas porque eram justificadas pelo enquadramento conceptual definido à partida.

Um disco à antiga

Kronos / Penélope é um álbum de enorme ambição e desmedida concretização. Talvez porque o tema em que se aventura é ele próprio descomunal e obriga a uma mão-cheia de diferentes variações – a ponto de, depois de Luís Figueiredo ter identificado esse “fio condutor” nas composições que tinha em carteira, o entusiasmo ter-se apoderado da sua criatividade e, de repente, o processo inverter-se e passar a ser a ideia de tempo a trazer ideias num jorro difícil de estancar. “O problema”, reflecte, “é que como foram cinco anos a escrever música, o material era muito e tinha duas opções: ou fazia uma coisa muito redondinha, com um conceito evidente, uma estética definida e uma unidade clara – a abordagem que tinha tentado nos discos anteriores; ou então algo que me pareceu super atractivo e divertido, que passava por fazer o disco mais diverso possível em todos os parâmetros.”

Desta segunda opção resulta aquilo a que Luís chama “uma aventura conceptual, um disco à antiga, daqueles com princípio, meio e fim, cheio de referências entre faixas”. Kronos / Penélope cresceu até só caber num álbum duplo, com temas de um dos CD a remeterem e a trocarem citações com os do outro, criando uma vasta rede de comunicação entre os dois conjuntos de composições – um primeiro mais direccionado para ensembles mais povoados e musculados, com mais decibéis, na órbita das formações clássicas do jazz; um segundo com mais espaço, mais ar, permeável a uma escrita reveladora da formação construída no cânone da música dita erudita. Para o primeiro disco foram então direccionadas também as composições que lidavam de forma mais directa com “a passagem e o desgaste do tempo”, aninhadas sob o título genérico Kronos. Para o segundo encaminharam-se os temas que lidam com a espera e a memória, reunidos sob a égide de Penélope – numa nova alusão à mitologia grega, em concreto à mulher de Ulisses, que aguarda durante 20 anos o seu regresso da Guerra de Troia relatado na Odisseia, de Homero.

(Claro que depois, só para poder confundir um pouco as regras, Luís enfia o tema Penélope no primeiro CD, curto-circuitando as referências que ajudam a separar as águas, numa belíssima composição que arranca uma notável performance de Rita Maria, a navegar entre o jazz, o fado e cantos beirões.)

O extraordinário mapeamento de Kronos / Penélope vai, no entanto, muito além da mera divisão temática ou por ambientes que ditam a distribuição das composições. Em cada um dos CD, fugindo a uma solução fácil que seria a de abordar cada segmento do reportório com duas formações distintas, Luís Figueiredo vai tocando cada uma das 23 peças com 15 ensembles diferentes – a solo, em vários duos ou trios, quartetos, quinteto, septeto ou octeto –, numa miríade de registos que tanto o contextualiza no jazz de índole mais tradicional quanto em territórios mais escorregadios, de definição menos óbvia, num contínuo exercício de importação de todas as linguagens que foi acumulando desde que começou a dividir os seus dias entre o Conservatório e as fugas para a música radicada na improvisação.

Basta, aliás, nomear os dois únicos compositores chamados como excepção à sua produção própria para se perceber o alcance do gesto: Chopin e Bill Frisell. Ao compositor polaco sonegou um estudo que sempre lhe soou a “uma daquelas canções intemporais”, como se directamente extraída do clássico songbook norte-americano. A Frisell, um dos seus confessos ídolos, músico que admira, entre outras razões, pelo facto de não se mostrar refém das suas capacidades técnicas e “ser um craque sem ter de tocar não sei quantas mil notas”, com a escolha a recair sobre um tema assente num “ambiente absolutamente cíclico”.

Certo é que, de todos os mundos que Luís Figueiredo habitualmente frequenta com o seu piano, há um que é ausência notada em Kronos / Penélope. Se podemos encontrar Luís como membro da banda de Cristina Branco ou de Ana Bacalhau, ou como orquestrador da canção de Luísa e Salvador Sobral que venceu a Eurovisão, neste duplo álbum não há grande vestígio das canções. A palavra, quando surge, é sob a forma falada, em textos entregues ao actor Manuel Wiborg, uma vez que o músico procurava uma “voz madura, com algum peso, grão e cansaço”, habilitada a carregar o tom retrospectivo do poema Amargas cores do tempo, da autoria do seu pai, o escritor Nuno Figueiredo.

As canções, por alguma razão que nem para si é clara, não pediram para estar presentes. Talvez porque lhe têm ocupado tanto tempo nos últimos anos que não quis fechar-se nesse mundo; talvez porque poderiam desviar a atenção de uma música desenvolvida e registada com uma tal minúcia que qualquer distracção seria uma traição à sua essência; talvez porque, simplesmente, não se lembrou.

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