Manuel Reis (1946-2018), o homem que inventou uma Lisboa que é nossa
Empresário e agitador cultural, fez acontecer a cidade, alavancando a partir do Frágil, do Lux ou da Bica do Sapato a comunicação e a criação em rede entre várias gerações. Se as cidades também são pessoas, então existe uma Lisboa dele que é também a nossa.
Gostava de imaginar, propor, planear e fazer. Sabia que o novo tinha de ser feito todos os dias. Era por isso um trabalhador frenético que não gostava de olhar para trás. Deixou obra palpável – o Frágil, o Lux-Frágil, a Bica do Sapato, a Loja da Atalaia, o Rive-Rouge, as exposições, as produções ou as cenografias. Mas acima de tudo impulsionou e fez acontecer Lisboa – cidade a que chegou aos 16 anos, vindo de Guia, Albufeira, no Algarve, onde nasceu –, e por extensão todo o país, com a sua acção, funcionando como catalisador, alguém que através da produção de ideias cria as suas próprias utopias fazendo os outros acreditar que é possível, contribuindo para mudar o mundo em redor e torná-lo um lugar diferente daquele que havíamos conhecido.
Manuel Reis morreu este domingo à noite, aos 71 anos, na sequência de complicações causadas por um cancro. Num comunicado enviado pelo Lux-Frágil podia ler-se: "O Manuel fez maior esta cidade, o nosso mundo e as nossas vidas também." Justamente. Personalidade afável, apesar da timidez natural que preservava um certo mistério, quase sempre vestido de negro, era um homem com mundo que com o decorrer dos anos se foi transformando num ícone de Lisboa. "Sem ele, isto fica tudo um bocado mais escuro", diz ao PÚBLICO o artista plástico Pedro Cabrita Reis. "Ele tinha uma vontade enorme de fazer coisas, de dar a Lisboa e às pessoas um lugar que não existia, um olhar diferente."
Já o arquitecto Manuel Graça Dias realça que Manuel Reis foi "um homem inventivo que punha a sua capacidade de invenção ao serviço dos outros", enquanto o designer Filipe Alarcão recorda o seu papel de impulsionador de novos criadores. "Devo-lhe o início da minha carreira como designer", afirma, recordando uma mostra colectiva em 1988 na Loja da Atalaia. "Ele era muito curioso e estava sempre atento. Nós crescemos por causa do Manel, ele puxou por nós e fez-nos crescer."
Os espaços que trabalhou ganharam conotações simbólicas. Passaram a ser mais do que lugares onde as pessoas se encontravam para falar, comunicar ou dançar. Funcionaram como incubadoras de ideias, reflectindo e ao mesmo tempo transformando o seu tempo, projectando conceitos de lazer e de produção cultural, associados à sociabilização, através do consumo e do prazer. Depois do Frágil e do Lux todas as terras portuguesas queriam ter também noites semelhantes.
Ao mesmo tempo, as histórias dos espaços de Manuel Reis são também crónicas de liberdade, do questionamento das normas sociais vigentes de um tempo e de aceitação da diferença. Entre as paredes desses lugares, pessoas, conceitos, moda, arte e música dialogaram ou colidiram, forçando novas dinâmicas, criando novas possibilidades, participando num novo fluxo cultural, noite após noite.
No início dos anos 1980, foi ele que esteve na origem da transformação do Bairro Alto no novo reduto da Lisboa culta e boémia. Na moda, na arquitectura, no design, nas artes, no cinema, na literatura, nas ideias ou no jornalismo, existia uma nova geração com vontade de se impor. Faltava um local que propiciasse a comunicação em rede: o Bairro Alto passou a ser esse sítio, simbolizado pelo Frágil, que abriu em 1982. De alguma forma, o Portugal contemporâneo começou ali, nessa época fundadora, pós-25 de Abril.
Do Frágil ao Lux
O país tinha saído da ditadura há meia dúzia de anos, queria abrir-se à modernidade, uma nova geração de artistas irrompia e o Frágil transformava-se no local onde todos queriam confluir. Até aí, para a maioria, sair à noite era exclusivamente ir beber copos. Mas para Manuel Reis, o "Manel", como era afectuosamente tratado pelos que o conheciam, a noite era essencialmente cultura. Não a cultura como um conjunto de regras abstractas, mas sim enquanto algo que se constitui através de uma prática criadora de identidades.
Nos anos 1980, ir ao Frágil exigia uma escolha. Era um modelo de cidade, era um estilo de vida, eram padrões de gosto e modos de sentir que estavam em causa. Uns aceitavam-no. Outros queriam fazer parte dele. E outros rejeitavam-no. A fama do espaço fez-se de muitas coisas. Por ser local de encontro de novos agentes criativos. Pelo mito da entrada vedada a muita gente, projectando essa fantasia de se estar entre semelhantes. Pela selecção musical criteriosa atenta ao que de mais emergente acontecia pelo mundo. Pelas mudanças de decoração da autoria de artistas, designers ou arquitectos (de Pedro Cabrita Reis a Rui Sanches, passando por Francisco Rocha). Pelas festas de aniversário grandiosas e pela apresentação regular de espectáculos ou performances. E porque a receber toda a gente estava Manuel Reis, o esteta que oferecia prazer.
Se hoje em dia muito se fala da reconversão de zonas urbanas votadas ao esquecimento, tudo começou aí, no Bairro Alto dos anos 1980 e do Frágil. Manuel Reis tinha essa visão. Voltou a tê-la em 1998 quando inaugurou o Lux-Frágil, no Cais da Pedra, em Santa Apolónia, acreditando que zonas esquecidas da cidade podiam ser rejuvenescidas através de lógicas diurnas e nocturnas em que coexistiam territórios de boémia, como espaços de restauração, lojas de discos, galerias de design ou de arte.
A festa do décimo aniversário do Frágil nas instalações da antiga Fábrica da Tabaqueira ou a passagem de ano de 1995 no Convento do Beato tinham sido indícios de que o Frágil já era pequeno para as suas ambições. E foi assim que, estava a Expo’ 98 nos seus últimos dias, o Lux-Frágil abria num edifício de betão datado de 1910 onde antes funcionava uma empresa de estiva. Os arquitectos Margarida Grácio Nunes e Fernando Sanchez Salvador assinaram o projecto, criando uma discoteca no rés-do-chão, um bar no primeiro piso e um terraço no último. Se o Frágil do Bairro Alto era pequeno, coeso e recatado, o Lux de Santa Apolónia é grande, disseminado, exposto. No Frágil ensaiavam-se atitudes, poses ou estilos. No Lux há menos sacralização, uma fruição mais descontraída, reflexo também de um país que se democratizou cultural e socialmente.
Laboratórios
O que não mudou foi essa ideia, sempre presente em Manuel Reis, de que os lugares têm de ser laboratórios, algo vivo, em construção. É por isso que ao longo dos anos nunca deixou de se inquietar, viajando regularmente, inspirando-se, deixando-se contaminar, para depois criar acontecimentos excepcionais, aniversários memoráveis, festas temáticas (uma das últimas foi a que dedicou a David Bowie aquando da sua morte) ou inúmeras sessões DJ e incontáveis concertos (Prince, Herbert, 2 Many DJs, LCD Soundsystem, Animal Collective, The Kills, Antony) que por vezes prenunciaram movimentos antes de estes despontarem realmente. Tudo isto, claro, sempre em equipa.
Homem de fidelizações, foi operando ao longo dos anos quase sempre com as mesmas pessoas, fossem eles programadores, DJ ou coordenadores como Rui Vargas, Pedro Fradique, Leonaldo Almeida, Lúcia Azevedo, Dexter, Paulo Bento ou Fernando Fernandes. Gostava de receber os velhos cúmplices dos anos 1980 no Lux, mas nunca deixou de se rodear de agentes dinamizadores de novas gerações, juntando intuição e risco ao rigor e ao planeamento.
Esteve sempre ligado ao mundo do design, da moda e do teatro, ao mesmo tempo que abria espaços nocturnos, restaurantes e lojas. Por estes dias não faltará quem o recorde pelas mais diversas razões. Por ter organizado exposições. Por ter impulsionado artistas, designers ou arquitectos. Por estar disponível para acolher a diferença, residisse ela no género, na cor da pele ou nos estilos de vida mais alternativos. Por ter acelerado o tempo de um país melancólico, sempre com elegância. Tudo isso é importante, mas o mais relevante são as marcas que ficam estilhaçadas pela cidade quase sem darmos por elas.
Como se existisse um Manuel Reis que não se vê, mas que está no meio de nós. Alguém que, através da sua actividade, conseguiu projectar uma ideia de cidade em seu redor. Alguém que deixa traços de si em acontecimentos em que não participou, em ruas onde não andou, em festas onde não esteve. Se as cidades também são pessoas, então existe uma Lisboa dele que é afinal a nossa e que estamos sempre a (re)descobrir, porque presente.
Até ao fim foi assim. Sempre preocupado em fazer. Paradoxalmente, não gostava muito de aparecer. Nos últimos tempos várias pessoas tentaram arrancar-lhe uma entrevista, forma de deixar fixadas histórias e memórias. A todos disse que não. Aos colaboradores mais próximos, e nesta altura em que o Lux-Frágil comemora 20 anos de vida, disse para continuarem com a festa e com a dança: “Porque vocês a sabem fazer.” Apenas um pedido. Que a vigília, esta terça-feira, a partir das 18h, decorresse no Teatro Thalia. Descobriu esse espaço aquando da morte de Diogo Seixas Lopes, um dos arquitectos que assinaram a recuperação do teatro. Queria que Lisboa vivesse mais aquele lugar de que tanto gostou e que muitos ainda não conhecem. Pediu expressamente que a iluminação se focasse no espaço e não na urna.
Até no adeus é assim. Generoso com os outros e com os lugares, solicitando que as luzes dos holofotes não incidam sobre ele, e nesse gesto dando-nos a ver aquilo que acabamos por integrar como nosso.