“Há uma desconfiança histórica sobre as vítimas de crimes sexuais”
As vítimas de violação foram historicamente incentivadas a calar-se “para o seu próprio bem”, diz a socióloga Isabel Ventura. A sua tese de doutoramento, sobre a história do crime de violação na legislação portuguesa, sai agora em livro.
A socióloga Isabel Ventura revisitou a história do crime de violação na legislação portuguesa no seu doutoramento, que recebeu o Prémio APAV para a Investigação 2016. Medusa no palácio da justiça ou uma história da violação sexual é agora publicado pela Tinta da China.
Os códigos penais mudam, mas as pessoas que aplicam as leis continuam a fazer interpretações antiquadas?
O que verifiquei é que há aquilo a que chamei de ideias flutuantes. São ideias que atravessam muito tempo, por vezes séculos. Percebi que é importante situarmo-nos historicamente quando, numa entrevista, alguém me explicava que o crime de coito oral é menos grave do que a cópula, a penetração peniana vaginal. Como isso não está na lei, perguntei porque é que dizia isso, e ela me respondeu: porque o artigo da violação tem uma história. E portanto esta pessoa justificou a maior gravidade de uma prática sexual com base na história do artigo, mesmo quando o crime de violação actualmente inclui toda a penetração de uma forma equiparada.
Estas ideias flutuantes estão relacionadas com questões de género?
É fundamental entender que o crime de violação começa por ser um crime contra a propriedade. As mulheres eram um bem alienável porque são reprodutoras, e por isso uma mulher virgem era muito mais valiosa, para assegurar a legítima transmissão da propriedade. No mundo patriarcal, é fundamental assegurar que o herdeiro é legítimo. Se ela perdesse essa virgindade, perdia valor no mercado matrimonial. É isto que está em causa na génese do crime de violação. Este crime tinha até recentemente um modelo de homem que penetra vaginalmente uma mulher contra a sua vontade ou mediante violência ou ameaça grave. Isto vai evoluindo, entretanto a legislação adoptou o modelo francês em que todas as práticas penetrativas são consideradas violação. Mas ainda permanece esta ideia flutuante sobre a virgindade, a ideia de que a experiência sexual de alguma forma torna as mulheres imperfeitas, em particular se for fora de quadros autorizados, como era o casamento.
Nas decisões mais recentes, ainda se encontram argumentos deste género?
Acho que se pode encontrar um pouco de tudo, porque a nossa jurisprudência, à semelhança de outras, não é homogénea. Facilmente a conseguimos agrupar entre uma jurisprudência mais progressista, respeitadora dos direitos humanos, e uma outra mais conservadora e que fundamenta as decisões com doutrina antiquada. Há muitas circunstâncias a concorrerem para as decisões judiciais. Aliás, há uma frase de uma pessoa da magistratura que entrevistei que acho profundamente honesta e muito crua, em que me diz: “Eu sei que isto pode parecer chocante para alguém que um dia pode estar em tribunal e pensar que esta pessoa pode ter almoçado bem e apreciar a prova de uma maneira, ou pode ter dormido mal e apreciar a prova de outra maneira, e é verdade, não lhe vou dizer o contrário.” Para mim, esta é uma frase profundamente honesta, que revela uma enorme auto-crítica e o reconhecimento de que há um conjunto de circunstâncias, umas mais objectivas do que outras, que interferem na forma de decidir ou pelo menos de apreciar a prova.
Não devia então haver mais escrutínio?
Acho que há crítica interna na magistratura, e quando analisei as revistas de Direito portuguesas isso era muito claro. Vi várias críticas a acórdãos em revistas jurídicas portuguesas, e acredito que haja esse diálogo interno. Acho que o Direito iria ganhar se dialogasse de forma regular com outros sectores, nomeadamente com a academia e as ciências sociais. Não estou a dizer que esse diálogo não exista, mas era importante ser mais aprofundado e mais visível.
O que é preciso para que os magistrados obedeçam, por exemplo, a orientações internacionais que exigem o reconhecimento de violência contra as mulheres?
Acho que não é humanamente possível exigir a um magistrado que tenha uma actualização permanente sobre tudo. Devia haver tribunais especializados para crimes violentos, incluindo os crimes de violência sexual e os crimes contra as mulheres. Todas as pessoas que sejam vítimas de crimes violentos deveriam ter acesso a um conjunto de procedimentos que salvaguarde o seu desempenho durante todo o processo. É muito revelador sobre o papel que o nosso Direito dá às pessoas vitimadas, que nem sequer salvaguarda que elas não tenham que se cruzar com quem as agrediu, que as faça a ir a tribunal prestar declarações como se fossem em primeiro lugar apenas uma prova, e não tenha o cuidado de pensar que efeito é que isto tem nestas pessoas e que apoio é que estas pessoas deveriam ter.
Esse é um dos argumentos para que o crime de violação não seja tornado público. O sistema já tem ferramentas para proteger as vítimas?
Quando analisamos a evolução dos crimes contra a autodeterminação sexual, por exemplo, que têm que ver com as crianças, vemos que esses mecanismos de protecção das vítimas têm que ser ajustados, ou têm que ser criados e depois implementados. Ter um crime como o de violação como semi-público significa que ainda é preciso que seja a vítima a apresentar queixa. E é preciso ver o que é que a literatura diz sobre porque é que as vítimas querem ou não apresentar queixa. Quando dizem que não querem apresentar queixa, as vítimas têm medo de várias coisas. Do sistema judicial, de não serem acreditadas, o que é lógico, porque sabemos que há uma desconfiança histórica sobre quem conta que foi vítima de um crime sexual. Há também o medo muito real de sofrerem uma nova vitimação, porque em diversos casos se verifica que há uma ameaça contínua depois da apresentação da queixa.
A violência doméstica é crime público desde 2000. As queixas aumentaram, há mais reconhecimento social, mais protecção da vítima. Poderia haver um efeito semelhante ao tornar público o crime de violação?
Quando parti para este trabalho, achava que a vítima devia ter sempre a última palavra relativamente à decisão de apresentar queixa ou não. Até que comecei a perceber que há um desincentivo à apresentação das queixas por variadas razões, e isto ao longo de séculos. As vítimas eram incentivadas a calar e esquecer, e o argumento era sempre “é para o teu bem, porque não há maneira de condenar o agressor sem te magoar a ti”.
E ainda hoje é usado esse argumento?
Sim. Acima de tudo também é dito que as pessoas devem ter direito à escolha, mas fui-me apercebendo de que algumas vítimas têm direito à escolha mas outras não. Se for menor de 14 anos, ou se for uma vítima de tráfico para fins de exploração sexual, não tem direito a escolha nenhuma. Estas vítimas não têm os mesmos constrangimentos, ou até piores? Não vão sofrer os mesmos processos de revitimação? Devemos exigir que todos os sectores da sociedade, e o sistema judicial em particular, criem condições para dar maior dignidade à vítima no processo penal. Não quero pintar um cenário de que não se faz nada, de que é tudo horrível nos tribunais. Não é tudo horrível, mas é um acaso. Podemos encontrar uma equipa muito motivada, com condições de trabalho e que já tem alguma formação. Há muitas situações em que as pessoas reportam que foram bem acompanhadas, mesmo pela polícia. Mas isto pode não acontecer por vários motivos, e não pode ser assim, porque estamos a falar de pessoas que passaram por processos traumáticos frequentemente muito violentos. Enquanto sociedade, não nos deveríamos conformar com isso.
Mas o sistema está preparado?
Quando estive nos tribunais, o que vi foi magistrados que tinham muito cuidado na inquirição às vítimas, e que mediavam com bastante assertividade os inquéritos conduzidos pelos advogados, que podem ser desagradáveis e mesmo ofensivos. Não posso concluir só com a observação que fiz, que foi muito centrada em determinados tribunais, que isso é o cenário geral. Não sei se é. Gostaria muito que fosse.
Isso leva-nos à Medusa. Por que é que é essa a figura a que recorre para retratar o percurso das vítimas de violação?
Numa das versões do mito da Medusa, ela era uma donzela que vivia no templo de Atena, onde foi violada pelo deus Neptuno. Atena ficou furiosa com a violação do seu solo sagrado e dirigiu a sua raiva para a vítima. Uma das coisas que aconteceu à Medusa foi uma transformação física, transformou-se num ser cujo semblante era tão horrível que provocava a morte. Mas aquilo que mais me tocou foi o facto de a Medusa ser condenada à solidão, quando vai viver para uma ilha onde as únicas pessoas que se aproximam são para a matar. Costumo dizer que ela era a personagem mais só da Antiguidade. E este sentimento de solidão, de profundo silêncio à sua volta, e de uma trajectória de sofrimento e de isolamento, é muito característico das pessoas que passaram por processos de vitimação sexual.
É um caminho tortuoso?
Muitas vezes existe esta ideia de que as vítimas têm que estar sempre a provar que o foram para toda a gente, não só em sede judicial. Ela tem que ter um conjunto de comportamentos típicos, não só apresentar marcas de que resistiu, mas também denunciar logo. Esta ideia está completamente desconectada da realidade, porque apenas uma ínfima parte denuncia logo uma vitimação sexual. Muitas nunca dizem nada. E isto por variadíssimos motivos, um dos quais é a dúvida sobre se vão acreditar nelas, ou a culpa imensa que sentem porque de alguma forma acreditam que fizeram alguma coisa. Porque isso é-nos dito socialmente.
Às mulheres?
Isto pode acontecer também, obviamente, com os homens vítimas de violência sexual. Com as crianças, então, é impressionante. Elas sentem-se culpadas por muitos motivos, e um dos quais é que os agressores lhes incutem culpa e tentam, muitas vezes com sucesso, fazê-las acreditar que elas são cúmplices do crime.
Há diferenças em termos de género entre agressores e vítimas?
Daquilo que pude ler nas situações dos homens vítimas de violência sexual, é preciso dizer que a maioria são vítimas de outros homens. E quando esses homens são vítimas de outros homens, há muitos factores que vão fazer com que se tornem resistentes a apresentar uma queixa. Primeiro por quase todos os motivos que as vítimas mulheres apresentam, e por outro lado porque há uma vergonha acentuada, porque deles não se espera nunca que sejam fracos, vulneráveis. Há uma descrença sobre as vítimas, ou sobre todas as que não se enquadram no papel estereotipado de vítima.
E há ainda a desconfiança acrescida com que as mulheres são olhadas ao longo da história.
Permanece esta ideia flutuante. Os homens são encarados como a metade racional, que tem uma série de capacidades que são valorizadas, diferentes da outra metade, que se descontrola, que é emotiva. Isto muda perante a possibilidade de a metade racional masculina estar perante a iminência de perder acesso às graças femininas. Aí há uma desculpabilização, que pode não ser evidente, e acontece, por exemplo, nos acórdãos de violência doméstica, perante um descontrolo dos homens quando as mulheres decidem ter uma vida mais autónoma. E a mesma coisa acontece em situações de violência sexual.
Os tribunais reproduzem este discurso?
Que eu saiba nos tribunais não é dito desta forma, contrariamente ao que se tem pensado. Não é que não existam argumentos primários, simplistas, mas diria que no geral são muito mais subtis. Ou seja, reproduzem frequentemente uma série de ideias flutuantes, lógicas antigas, mas de uma forma reconfigurada, sofisticada. Por isso é que não é assim tão fácil desvelar a reprodução da desigualdade de género em todas as decisões, desde logo porque ela pode não existir em algumas. Ainda há alguns argumentos e fundamentações primárias, mas no geral considero-as bastante mais subtis.
Quando um acórdão diz que mulheres confiantes não têm motivos para continuar com companheiros agressores, considera isto um discurso gritante ou subtil?
Acho que, para muitas pessoas, não é gritante, porque para muitos sectores sociais as vítimas devem ter um determinado comportamento. Para mim é gritante no sentido de revelar um enorme desconhecimento face a processos de violência na intimidade. Mas não significa que, em termos de argumentação, genericamente, seja profundamente simplista. Por exemplo, por vezes há uma tendência para a literalidade das coisas, e isto é mais subtil porque pode ser feito como uma análise meramente formalista, quando se está a discutir no abstracto normas jurídicas. Aí eu diria que é mais sofisticado do que, pura e simplesmente, dizer coisas que as pessoas rapidamente identificam como um disparate, como falar em mulheres “adúlteras”.