Forrester, esse malandro, já acreditava nos vinhos tranquilos do Douro

Nunca saberemos que Douro existiria hoje se as teses de James Forrester tivessem vingado. Seria, de certeza, diferente.

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Manuel Roberto

Todos nos habituámos a recordar Joseph James Forrester, o lendário Barão de Forrester, como o autor do muito celebrado Mapa do País Vinhateiro do Alto Douro e como o mais duriense dos ingleses, morto, em 1861, no naufrágio de um barco rabelo no Cachão da Valeira, numa viagem entre a Quinta do Vesúvio e Peso da Régua, e do qual se salvaram D. Adelaide Ferreira e o seu marido, Francisco Torres. Sobre a sua extraordinária obra e vida (e a suprema ironia de ter morrido no rio que cartografara e que conhecia como ninguém) já se escreveram livros e livros, mas há uma faceta do seu percurso como negociante e produtor de vinho do Porto (Forrester chegou a produzir duas mil pipas de vinho do Porto por ano) que merece ser sublimada, pela sua actualidade: a luta que travou contra a “nova moda” de interromper a fermentação do vinho com a adição de aguardente, o vinho do Porto actual. Antes, só no final da fermentação é que era adicionada alguma aguardente. Os vinhos ficavam sempre secos.

Adepto da integralidade do vinho duriense, Forrester opunha-se a todo o tipo de “adulterações”, como a utilização de baga de sabugueiro e açúcar, e defendia um vinho com pouca ou nenhuma aguardente. O barão disse o que pensava na brochura A Word or Two on Port Wine, publicada em 1844, em Londres, causando um verdadeiro terramoto, que durou cerca de uma década. Atacado violentamente pelos seus pares (mais duro, só mesmo Camilo Castelo Branco, que o detestava, ao ponto de, uns bons anos depois, se referir ao seu afogamento como “uma das mais notáveis vinganças do rio Douro”), teve amparo apenas nos pequenos lavradores do Douro. Mas acabou por perder essa batalha.

Forrester criticava os vinhos encorpados, retintos, poderosos e adocicados, feitos de acordo com a moda da altura (iniciada nos alvores do século XIX) e que degeneravam frequentemente em excessos cultivados pelo comércio. Ao contrário da maioria, que encarava a aguardentação como um melhoramento necessário do vinho duriense, Forrester acreditava que os bons vinhos do Douro valiam por si. Na sua opinião, o vinho natural do Douro “perfeitamente fermentado é vigoroso e elegante no paladar, e de gosto seco, com um cheiro atractivo”. “É animador e digestivo; e decomposta que seja a parte sacarina, e convertida em álcool, pouco ou nenhum espírito adicional se necessita para o conservar. Aumenta com a idade em gosto e aroma; e sendo perfeitamente trasfegado pode durar por muito tempo, conservando assim todas as suas propriedades vinícolas.” Visionário, pugnava por vinhos mais puros e singelos, de preferência feitos de Bastardo, Alvarelhão, Touriga, Tinta Francisca, Tinta Lameira, Tinta Grossa e Sousão, que eram as castas do seu agrado.

Sim, o Sousão (o Vinhão dos Vinhos Verdes) já existe no Douro há mais de 200 anos. E o Castelão, que só associamos ao Sul do país, ainda há mais tempo. No século XVI, a propósito dos “excelentes vinhos [de Lamego] e de mais dura que no reino se podem achar e mais cheirantes”, Ruy Fernandes já enumerava como castas tintas de qualidade a Castelão, a Bastardo, a Donzelinho, a Samarrinho, a Mourisco e a Verdelho Preto, entre outras. Nas variedades brancas, destacava a Trincadente, a Agudelho, a Gouveio, a Mourisco e a Álvaro de Sousa, como era conhecida a Malvasia Fina, a melhor de todas também para James Forrester.

Com o advento do vinho do Porto, o Douro passou a ser associado só a este fortificado, pelo que é mais ou menos aceite dizer-se que o Douro só despertou para os vinhos tranquilos há três décadas. Mas esta visão da história é um pouco redutora. Desde sempre se fizeram brancos, palhetes e tintos tranquilos no Douro. É verdade que a maioria era consumida na região. No entanto, no início do século XX houve um vinho duriense que alcançou grande prestígio nacional, o branco Ermida, da Real Companhia. Chegou a ser o vinho da moda no país, sobretudo entre as elites.

Com a proclamação da República, a moda passou a ser o vinho de Colares (Viúva Gomes, Burjacas, M. Silva), logo destronado pelos Serradayres (Tejo), branco e tinto, e pelos Bucelas. Nos banquetes do poder, onde as modas nasciam, seguiram-se os vinhos da Bairrada, os Bussaco, os Agueira, os vinhos de Óbidos e o Lago Cerqueira, um verde de Amarante. Com o Estado Novo, saltaram para a ribalta os vinhos do Dão. Mais tarde, chegaria a moda dos rosés, ditada pelo Mateus, a que se seguiu um longo reinado dos vinhos alentejanos. Quem recorda esta evolução é Águedo de Oliveira (um transmontano de Torre de Moncorvo que foi ministro das Finanças de Salazar), no seu ópusculo A problemática intrincada do vinho de Lamego, publicado em 1974 pelos “Amigos de Bragança”, antecâmara da fundação Os Nossos Livros, que o político deixou como herança naquela cidade.  

Os vinhos tranquilos do Douro, tirando os fenómenos Ermida e Mateus Rosé, só começaram a ganhar verdadeiro protagonismo com os vinhos da Casa Simões, do Chiado, vendidos em garrafas duplas, e, sobretudo, com o Barca Velha e o Reserva Especial, da Casa Ferreirinha. A partir daí, houve uma série de vinhos da Real Companhia Velha e de algumas cooperativas que chegaram a ter alguma fama. Porém, o Douro só passou a ser uma região de grandes vinhos tranquilos quando os produtores de vinho do Porto passaram a dar um segundo destino às uvas. E isso foi, de facto, há muito pouco tempo.

Nunca saberemos que Douro existiria hoje se as teses de James Forrester tivessem vingado. Seria, de certeza, diferente. Pelo menos, os seus vinhos tranquilos já podiam ter uma história de mais de 150 anos, que, neste negócio, é mais ou menos o tempo necessário para se começar a viver do prestígio. Mas a História seguiu o rumo que se sabe.

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