Relatório abriu guerra entre Protecção Civil e poder político
Protecção Civil não fez os alertas à população que o relatório dos técnicos independentes indicia que fez. Dois pontos do documento estão a ser atacados pelo então secretário de Estado. Presidente da comissão diz que vai analisar os dados.
Se o relatório sobre o que aconteceu em Pedrógão Grande teve o condão de unir quase todos os responsáveis, o novo documento sobre os incêndios de Outubro teve como resultado fazer sair debaixo das pedras problemas antigos até aqui abafados entre agentes da Protecção Civil, governantes e a própria Comissão Técnica Independente (CTI).
Pela primeira vez, houve um documento em que consta a versão da Autoridade Nacional da Protecção Civil sobre a responsabilidade e sobre o que pôde e não pôde fazer - os anteriores eram meramente descritivos. E houve também um ex-governante com responsabilidade directa, o ex-secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, que se quis defender.
São dois os pontos que estão a ser postos em causa e correspondem a duas das principais conclusões do documento.
Os técnicos independentes criticaram o facto de a Protecção Civil referir a previsão de chuva nos seus alertas, dando a entender que essa referência da ANPC levou à realização de queimadas. “Esta indicação terá precipitado um conjunto de tarefas agrícolas, relacionadas com a limpeza do solo, com a renovação de pastagens, que conduziram ao aumento de ignições em período de alerta vermelho”, lê-se no relatório, que diz que este “comunicado é responsável por criar uma expectativa claramente contraditória”. Mais tarde acrescentam que a “referência à chuva, no referido CTO [Comunicado Técnico-Operacional Nacional], era desnecessária”.
"CTO" é a sigla-chave nesta crítica, uma vez que os técnicos se estão a referir, na verdade, a um documento reservado. No CTO de 14 de Outubro, a que o PÚBLICO teve acesso, é claramente dito que é um “documento de carácter reservado que não se destina à divulgação pública”. São linhas orientadores dirigidas aos agentes de protecção civil para estes depois divulgarem à população as “medidas de prevenção e autoprotecção”. E nas indicações que estes devem dar à população, são enumeradas as várias restrições, nomeadamente a proibição de realização de queimadas ou fogueiras e o lançamento de foguetes.
Nesta quinta-feira, o então responsável pela tutela da ANPC, o ex-secretário de Estado Jorge Gomes, falou pela primeira vez sobre os incêndios para se defender e disse que os técnicos da CTI não fizeram o “contraditório” e que o relatório contém dados “falsos”. Em causa está a informação dada aos peritos pelo então 2.º comandante de operações nacional, Albino Tavares, que era o mais alto responsável da ANPC, de que o Governo tinha recusado vários pedidos de reforço de meios humanos e aéreos. "O Estado e o Governo jamais retirariam meios quando eram necessários. Nada do que aconteceu foi por falta de meios, tudo o que aconteceu foi porque não havia forma de conter a dimensão [dos fogos]", sustentou Jorge Gomes numa conferência de imprensa.
"Nós não fizemos desmobilização rigorosamente nenhuma", afirmou, referindo que, no que toca a meios humanos, concedeu o reforço pedido. “Numa primeira fase foram autorizadas 50 equipas de combate e na segunda fase mais 72 equipas”. Uma versão que bate certa com a do comandante operacional nacional, que disse que esse segundo reforço foi concedido a 9 de Outubro. No entanto, este reforço chegou tarde, por já ser difícil voltar a mobilizar equipas e o dispositivo não estava assim na sua máxima força.
Quanto aos meios aéreos, Jorge Gomes contradiz o comandante, dizendo que os aviões estiveram sempre operacionais e que foi dada autorização para contratação de horas de voo. Admite, no entanto, que não foi reforçado o dispositivo da Fase Delta (1 a 15 de Outubro) e que se verificou um prolongamento dos contratos entre os dias 16 e 31 de Outubro. Ora o incêndio começou um dia antes deste reforço.
Perante as críticas do ex-governante, o presidente da CTI, João Guerreiro, diz ao PÚBLICO que vai analisar os dados que Jorge Gomes lhe fez chegar. Contudo, lembra o presidente, “o relatório está baseado em documentação oficial e em audições, com um suporte informativo muito sólido”.
Já o primeiro-ministro remeteu ontem explicações para o ex-governante. “Ninguém melhor do que o ex-secretário Jorge Gomes sabe o que aconteceu e poderá falar sobre essa matéria”, disse em Bruxelas.