“Fazer guerra tornou-se importante para o regime russo adquirir legitimidade”

Juri Luik, ministro da Defesa da Estónia, diz que Moscovo pode continuar a lançar-se em aventuras externas, embora como e onde seja difícil de prever.

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Vladimir Putin fez um comício na Crimeia a 14 de Março, no quarto aniversário da anexação Maxim Shemetov/Reuters

Juri Luik estava em Moscovo, como embaixador, quando a Crimeia foi anexada pela Rússia. O agora ministro da Defesa, que esteve recentemente em Lisboa, recorda o “sentimento de choque e de crise” causados pelo comportamento da Rússia e não exclui qualquer hipótese no rol de ameaças à segurança da Estónia.

Esperam mudanças na política externa russa após a reeleição de Vladimir Putin?

Tenho muitas dúvidas, provavelmente irá haver algumas mudanças no Governo, mas as tendências gerais, tanto na política interna como externa, irão permanecer. Para aumentar a sua legitimidade, o regime pode continuar a lançar-se em aventuras externas, embora como e onde seja difícil de prever. Fazer guerra tornou-se uma parte importante de como o regime russo adquire a sua legitimidade. 

Que diferenças encontra entre os tempos em que foi embaixador em Moscovo e os de agora?

Fui para a Rússia em 2013 e tivemos um período construtivo curto, durante o qual negociámos vários acordos para resolver alguns problemas. Mas tudo cessou em 2014, quando os russos atacaram a Ucrânia e anexaram a Crimeia.

As comunicações com Moscovo cessaram de imediato após a anexação?

Não diria isso. Houve um sentimento de choque e de crise, em que ninguém sabia onde isto iria parar, até onde é que a Rússia estava disposta a ir. As negociações no seio da UE também demoraram o seu tempo até que fossem iniciadas as sanções — não foram introduzidas no dia seguinte, houve um processo político. O que é importante é que a Crimeia e o Leste ucraniano provaram à Europa ocidental que, infelizmente, tudo aquilo para que os países bálticos alertavam não era nada que tivéssemos simplesmente inventado. Hoje, ao percorrer as capitais europeias, não há praticamente qualquer diferença na forma como as pessoas avaliam o comportamento da Rússia. O Ocidente está muito unido. As acções da Rússia, há já muito tempo, não são apenas dirigidas contra os vizinhos, são também dirigidas contra as grandes democracias ocidentais, como aconteceu com os EUA e agora com o Reino Unido. Não há dúvida que isto cria um sentimento negativo muito forte em relação à Rússia.

Mas a Estónia é também um Estado fronteiriço e possui uma minoria russa. Que tipo de relações é possível manter nesta situação?

Temos relações de Estado para Estado muito normais. Temos embaixadas que têm trabalhado muito activamente, temos intercâmbios culturais, em algumas áreas económicas a cooperação decorre muito bem. Eu não exageraria a tensão que existe entre os nossos dois países. A tensão é sobretudo geral, entre o Ocidente como um todo e a Rússia. Não há encontros de alto nível, mas poucos países os tiveram com a Rússia. É muito importante ter noção de que olhamos para o povo russo com muita simpatia, o problema é o regime.

Os mais recentes exercícios militares da Rússia simularam uma ofensiva contra os países bálticos. Apesar de ser um exercício, esta abordagem exerce algum tipo de pressão sobre os estónios?

Olhamos para estes exercícios com muita preocupação, porque são o melhor indicador do que o teu vizinho pensa sobre ti. Os cenários que foram testados são sobretudo ataques convencionais contra a NATO, não apenas contra os países bálticos. Seguimos com muita atenção aquilo que a Rússia faz e sempre sublinhámos que estes exercícios fazem parte da modernização maciça das suas Forças Armadas. Eles têm feito exercícios para mostrar a velocidade com que se conseguem mobilizar. E se juntarmos tudo isto aos objectivos políticos de Putin, que disse que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe do século XX, então torna-se óbvio que isto deve ser uma preocupação profunda, não apenas para os países bálticos, mas para o Ocidente em geral.

Um ataque convencional à Estónia, que é membro da NATO, parece altamente improvável. Quais são então os principais receios em relação à Rússia?

Sendo eu ministro da Defesa, não posso dizer que algo está excluído. Não posso dizer que os cenários convencionais estão excluídos. Temos de ter cuidado quando avaliamos as acções da Rússia. Dissemos muitas vezes no passado que algo seria muito improvável. Quem teria pensado que a Rússia iria lançar uma guerra contra a sua nação irmã, com que tem laços históricos profundos — na verdade, a Ucrânia é o berço da Rússia como cultura. Não penso que tivéssemos encontrado um analista que, antes das acções na Crimeia, antecipasse o que veio a acontecer. Digo sempre que a ameaça russa está sempre dependente da nossa preparação. Quanto mais preparados estivermos, menor será essa ameaça. Se estivermos divididos ou enfraquecidos, então a ameaça aumenta. Se falarmos das ameaças híbridas, então os alvos da Rússia não são tanto a Estónia ou a Letónia ou outro país em particular, mas sim a unidade do mundo ocidental. Eles tentam dividir para enfraquecer, para que se questione os nossos valores e alguns dos canais de propaganda, como a RT ou a Sputnik são a grande prova disso.

A Estónia foi um dos primeiros países a ser alvo de ataques informáticos atribuídos à Rússia. Ninguém prestou atenção quando devia?

Penso que naquela altura isso foi visto como algo que não se repetiria. O ataque foi bastante rudimentar, foi a primeira tentativa de organizar uma ofensiva destas. Os métodos foram bastante simples, mas as capacidades russas aumentaram e tornaram-se muito sofisticadas desde então. É igualmente importante notar que eles não se esquivaram a usá-las. Portanto, tem razão quando diz que, se todos tivessem tido mais atenção a este ataque contra a Estónia, hoje estaríamos mais bem preparados. Só agora estamos a perceber o que a Rússia consegue fazer neste âmbito da guerra informática e informativa. Só agora percebemos a magnitude com que tem operado, por exemplo nos EUA, mas também noutros países. 

Em 2016, a NATO anunciou que iria passar a tratar das ameaças cibernéticas como parte das dimensões convencionais (terra, ar, mar e espaço). Que progressos tem havido desde então?

Essa é uma declaração muito séria, porque mostra como a guerra informática se tornou parte de qualquer conflito militar. Obviamente que é um dever da comunidade ocidental estar preparada. A NATO tem dado uma série de passos nesse sentido, mas devo dizer que é preciso fazer mais. Os países têm tido muita relutância em cooperar nesta esfera. As regras de cooperação, mesmo entre aliados, não foram desenvolvidas suficientemente. O que acontece é que conjugamos as capacidades nacionais dos vários Estados-membro com a coordenação ao nível da NATO. Se alguma coisa acontecer, os aliados podem responder, mas a NATO não desenvolveu a sua própria estratégia de ciberdefesa. No que toca à Estónia, somos um motor importante deste tema. Temos o centro de excelência para o qual fornecemos muito do staff. Estou muito feliz que os recursos do centro sejam utilizados pela NATO, seja para redigir a doutrina, seja para preparar legislação necessária para enquadrar o uso da força neste domínio. Diria que o centro de excelência em Talin é a componente-chave da política de ciberdefesa da NATO.

Porque existe esta relutância entre os países em partilhar informação informática?

Penso que ainda não conseguimos criar uma verdadeira estrutura em que todos se sentissem confortáveis. O problema não é tanto lidar com questões sensíveis — a NATO lida com questões sensíveis todos os dias. Mas é algo novo e as regras sobre, por exemplo, como responder colectivamente a um ataque informático ainda não estão definidas. A questão é que tipo de informação é necessário partilhar, o que se irá fazer com ela e como é usada. Acho que à medida que continuarmos a lidar com estas questões, e agora que os membros da NATO as identificaram como uma dimensão real, iremos chegar lá. Comparo com a política nuclear da NATO. A NATO propriamente dita não tem armas nucleares, mas ao longo dos anos foi desenvolvida uma política que permitiu uma abordagem colectiva que resultou na participação de todos os países, não apenas daqueles que possuem armas nucleares. [A cibernética] é uma esfera igualmente complicada, provavelmente não tão dramática como o nuclear.

Antecipa um futuro em que um ataque informático pode servir como justificação de uma guerra?

Em termos teóricos, sim. Acho que não vimos um ataque informático que tivesse tido consequências maciças. Mas sei que há países com essa capacidade. Acontece que se têm contido de a usar, tal como não se usam armas nucleares. Se se atacar alguém, é preciso ter a certeza que as suas próprias infra--estruturas estão bem protegidas face à resposta. Não estou certo de que existam muitos países com essas garantias. Acho que há uma espécie de equilíbrio dissuasor. Mas é claro que há ataques de menor dimensão a toda a hora, como os que combinam pirataria e guerra informativa. Foi o que vimos, por exemplo, nos EUA: roubam-se emails a alguém, uma operação simples, mas quando se combina com campanhas de informação, então torna-se uma arma poderosa. Isto também é muito grave, mas não constitui uma justificação para uma guerra.

Mas ao contrário do que acontece com o nuclear, muitas vezes é muito difícil discernir quem é o responsável por um ataque informático.

Quem diz que é impossível detectar a fonte de um ataque está enganado. Quando os alvos são grandes redes de infra-estruturas, isto só pode ser obra de um Estado, não pode ser feito por um hacker solitário sentado no sofá. Requer muito dinheiro, recursos, conhecimento, encriptação. Se estivermos a falar de roubos de emails, então isso pode ser feito por muitos actores diferentes.

Um país tão profundamente empenhado no mundo digital como é a Estónia não se torna um alvo mais fácil?

Por um lado sim, mas por outro não. É uma mais-valia, porque somos um país pequeno e, em termos económicos ou de serviços públicos, isto é um factor multiplicador e que beneficia muito o nosso povo. Os estónios estão tão habituados a isto que seria absolutamente dramático perder isso. Por outro lado, porque estamos vulneráveis e porque tivemos experiência com ataques, diria que estamos na linha da frente no desenvolvimento da ciberdefesa. Investimos muito nisto. Muita gente pensa que basta ter alguns tipos muito inteligentes para construir um programa de ciberdefesa, mas na verdade é algo muito caro. Fazemos muitos esforços para estarmos preparados para qualquer eventualidade. Algo que é característico deste meio é que os atacantes estão sempre a alterar o seu modus operandi. Podem fazer-se milhões de coisas, é um espaço de batalha muito flexível. Por isso nunca se pode dizer que se está 100% preparado. Mas comparado com muitos outros países, incluindo democracias ocidentais, estamos bem defendidos.

Que resposta deveria ser dada ao envio de mísseis nucleares russos para Kaliningrado? 

É importante ter em consideração que a Rússia tem capacidades nucleares estacionadas perto da fronteira com a Estónia há já muitos anos, numa base em Luga, a menos de cem quilómetros da fronteira. Portanto estamos no raio dos [mísseis de curto alcance] Iskander há já muito tempo. É claro que é um assunto que causa grande preocupação, mas é sobretudo um símbolo daquilo de que a Rússia é capaz e de quais são as suas intenções. É surpreendente como a Rússia tem investido na militarização de Kaliningrado. Uma abordagem mais sensata seria usar a posição única de Kaliningrado, entre dois países da UE, e fazer uma zona económica especial que beneficiaria toda a gente, incluindo Kaliningrado, em vez de a transformar numa espécie de fortaleza.

Quais as reais possibilidades de a Ucrânia ingressar na NATO?

Há uma frase nas conclusões da cimeira da NATO de Bucareste, em 2008, que recebeu a aprovação de todos os membros, que diz que a Ucrânia e a Geórgia vão ingressar na NATO. A dúvida é quando e em que circunstâncias políticas. Acredito que a Ucrânia se irá juntar à NATO. Quando me recordo de como os países bálticos entraram na NATO, também isso foi um pequeno milagre. Agora parece que foi um passo lógico, mas na altura foi alvo de uma grande luta política no seio da NATO. Nunca devemos dizer nunca. Pode parecer improvável hoje, mas poderá ser possível amanhã, quando as circunstâncias políticas se alterarem.

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