A morte pintada de fresco por Sara Bichão

Num tempo em que a morte foi dessacralizada, em que é difícil arranjarmos narrativas para lidar com ela, é surpreendente vermos uma artista tão nova a reflectir sobre o fim. Mesmo que Sara Bichão prefira falar de “abismo”, de “limites”, em vez de “morte”.

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Sara Bichão na exposição Encontra-me, Mato-te, com a luz vermelha que incide sobre a obra Direcção (2018) Miguel Manso

O lago vulcânico onde Sara Bichão pensou que podia morrer no Verão é a peça-fantasma da exposição individual que a artista inaugurou na semana passada na Colecção Moderna-Museu Gulbenkian, em Lisboa. Na época de todos os GPS, onde estamos sempre a partilhar as nossas coordenadas através de telemóveis, Sara diz-nos apenas que esse acontecimento traumático se passou numa cratera de vulcão cheia de água na zona montanhosa de Auvergne, perto de Clermont-Ferrand, em França. Não quis saber de coordenadas, tirar medidas, e por isso deixa essa sensação de abismo actuar na imaginação de cada um.

Há oito peças na exposição Encontra-me, Mato-te com nomes que espelham o “memento mori” (lembra-te que és mortal) de uma artista com apenas 31 anos: Estela, Vertigem, Grave, Porto Seguro, X, Direcção, Agosto 2017 e 8. Não é por acaso que as obras Grave e podem também ser entendidas como Vanitas — reflexão sobre a vacuidade da vida —, ou mesmo no primeiro caso como uma natureza-morta, uma vez que Grave é um boneco de trapos também composto por caroços de pêssego comidos por pessoas com uma ligação afectiva à artista.

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Miguel Manso
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Miguel Manso

Sara Bichão é também uma omnívora, diríamos, com uma produção bastante experimental. Além da exposição na Gulbenkian, tem neste momento outra no Atelier-Museu Júlio Pomar, também em Lisboa, onde mostra mais 15 obras, juntamente com outros dois artistas (o próprio Júlio Pomar e Rita Ferreira). Entre uma e outra, conseguimos construir um panorama da diversidade de meios para onde se alargou um trabalho que começou na pintura. “Nunca vi uma artista mais trabalhadora”, brincou Penelope Curtis, directora do museu na apresentação da primeira individual de Bichão na Gulbenkian, que ocupa o Espaço Projecto do antigo Centro de Arte Moderna, sobre os meses de trabalho que precederam a exposição.

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Foram meses intensos a trabalhar na Gulbenkian, porque havia muito que coser, com gestos e memórias que vêm da infância, como os tecidos laranja herdados da avó, e que são agora a única marca de cor — real, física, inscrita —, numa obra até agora descrita pelo seu à-vontade com a cor.

Sara Bichão faz “uma escultura narrativa, mas também muito física”, acrescentou Penelope Curtis. No pequeno livro que acompanha Chama no atelier-museu, a curadora Sara Antónia Matos fala de “uma dimensão visceral, associada à libertação de energias intuitivas, por vezes com uma vertente escatológica”. Se a primeira exposição nos puxa para o abismo, a segunda pode queimar-nos.

“Não faço ideia do diâmetro do lago vulcânico. Quero que se torne uma história na minha cabeça. No meu relógio terá sido meia hora a nadar, mas esse é um tempo provavelmente bastante ficcional”, explicou Sara Bichão durante a visita à exposição.

Além da capacidade de narrar uma história, a curadora da exposição da Gulbenkian, Leonor Nazaré, sublinha que o lado físico, manual, também abordado pela directora do Museu Gulbenkian, é importante na obra de Sara Bichão, numa artesania que mistura uma busca animista, quase mágica, com restos e despojos da vida urbana. Como aquelas esculturas feitas a partir de ramos queimados, pedras ou o tradicional sabão azul e branco português mais visíveis no Atelier-Museu Júlio Pomar. 

Colorido de fresco

Nascida em 1986 em Lisboa, onde tem o seu atelier, Sara Bichão fez a sua formação na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e expõe desde 2009. Como é normal na sua geração, tem feito residências artísticas no estrangeiro, nomeadamente em Nova Iorque, trabalhando regularmente com galerias norte-americanas.

Antes destas duas exposições, foi possível, mais recentemente, ver o seu trabalho na Bienal Anozero, no final do ano passado em Coimbra, em que uma das obras parece relacionar-se com Estela, exposta na Gulbenkian, mas mostra também ligações com outras do Atelier Júlio Pomar, construindo uma famílias de estruturas esqueléticas cobertas por tecido cru. Na Bienal Anozero, com curadoria de Delfim Sardo e Luiza Teixeira de Freitas, Sara apresentou uma escultura-abrigo em co-autoria com a artista francesa Manon Harrois, capaz de se reconfigurar cada vez que é apresentada (ainda um trabalho em progresso a que vão voltar brevemente numa residência artística nos Açores) e resultado da residência em França no ano passado durante a qual se deu o acontecimento traumático.

Num tempo em que a morte foi dessacralizada, em que é difícil arranjarmos narrativas para lidar com ela num mundo ocidental pós-religioso, é surpreendente vermos alguém tão novo a reflectir sobre o fim, mesmo que Sara Bichão prefira falar de “abismo”, de “limites”, em vez de “morte”. Como foi então o momento em que percebeu que era mortal? Fala-nos debaixo da obra Estela, a que podemos atribuir um duplo significado estelar e funerário, uma estrela de 16 pontas que surge suspensa no pequeno auditório do CAM: “Senti-me desligada de mim e as coordenadas que dão sentido ao corpo deixaram de fazer sentido. O nosso corpo torna-se uma partícula quando não está em movimento, porque ele quer gravidade e chão. Estela é uma força em ascensão, o próprio ângulo aponta para cima, e não para baixo. Ela é uma espécie de mapa, do corpo que ficou. É quase animal, porque tem uma estrutura esquelética por trás, mas por outro lado é incorpórea, porque aparece numa névoa de luz. Ela voa no espaço. E mapeia, sim, desenha, aquilo que foi uma experiência que eu hoje vejo bidimensionalmente.”

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Esse desenho é cosido com linha no pano cru de Estela, marcando um percurso entre dois pontos, onde Sara volta a usar, também discretamente, o tecido laranja da avó. Esse movimento que vai num só sentido e que temos de descortinar na escuridão em que Estela é exibida, é muito mais explícito na obra Direcção, que marca com uma tira de pano cru toda a galeria do Espaço Projecto. E guarda no seu interior, qual rede de baloiçar, vários balões de água com o peso exacto do corpo da artista.

Sara Bichão conta que foi até ao centro do lago vulcânico. E aí, ela, que é uma boa nadadora, entrou em pânico, porque deixou de ver terra em qualquer sentido, conta com a voz embargada. Usamos, por agora, o relato que fez à curadora Leonor Nazaré e transcrito num texto O Grito de Hefaísto, que corresponde na mitologia romana a Vulcano e é também o deus dos escultores: “A vertigem e a atracção para o fundo foram a primeira grande força (...). Depois, o pânico terá posto em causa a eficácia dos pés e das mãos. A ideia de que o perímetro circular da cratera era apenas um conceito e a noção de que a percepção da escala do lugar dependia totalmente da sua situação emocional e interior fragilizaram a sua capacidade de resistência.” O desaparecimento era uma hipótese.

Sobre se há algo de novo no seu trabalho provocado por esta aventura limite Sara hesita, mas fala de uma nova performatividade ancorada em acções passadas: “O lado performativo do meu trabalho, relacionado com uma acção física minha, é uma coisa bastante nova. Antes, a minha prática estava muito baseada na minha cabeça, naquilo que me emocionava, mas era uma coisa fetichista. Agora, há a noção que tudo aquilo com que me confronto gera um jogo de escalas que tem um ponto de partida no meu corpo. Isso faz com que as cores, por exemplo, sejam muito mais escolhidas. Anteriormente eu usava-as inconscientemente, como um alfabeto, porque eu sou de Pintura. Mas agora o corpo tomou uma importância tal, a tal consciência sobre ele, que o pensamento cromático se tornou uma informação bastante cuidada.”

A cor que estas peças ganham na Gulbenkian — à excepção do tecido laranja que se esgotou nesta última exposição — é entendida pela artista como “sinalética”, como capaz de dar “indicações performativas”. Como se Sara Bichão pudesse pintar as peças, com luzes vermelhas e azuis, e depois desfazer o gesto, retirando a cor à exposição da Gulbenkian.

“O norte e o desnorte são uma das questões da exposição”, explica Leonor Nazaré. “Há a questão da luz e das temperaturas que tem muito que ver também com as sensações físicas vividas. Há uma oposição muito operativa entre baixo e cimo: o grande abismo que era o centro da cratera e a peça Estela, que está aqui ao lado, e que aponta para cima. Entre as duas, há o poço, simbolicamente essa estrutura que liga o interior da terra ao cimo.”  

Sobre se a exposição Encontra-me, Mato-me tem também como sujeito a morte, como parece indicar o título, Sara Bichão responde que este quase que pode ser visto como a nona peça da exposição. “O título, o ‘Mato-te’, é um diálogo entre mim e a natureza. Tem um efeito espelho que acaba por me revelar. Eu sou confrontada com o perigo e apercebi-me da posição em que estava.” A relação de fetiche com a Natureza, animista, revelou-se mais complexa do que parecia, e Sara Bichão deixou de ser apenas uma recolectora. “Se até aqui eu comandava, escolhia quais eram os objectos que me seduziam, agora estou a contar uma fantasia que me ia comendo. Se os objectos e as cores que eu criava não tinham relação com o mundo, eram histórias geralmente geradas na minha cabeça, neste caso não é assim. É documental, é real e atacou-me. Escolheu-me, mais do que eu escolhi aquela situação.” Sara Bichão descobriu a tragédia e os deuses greco-romanos: Vulcano tornou-se Saturno.

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