Quénia pede ajuda a Londres e Washington para investigar Cambridge Analytica

Campanha do ano passado foi "criminosa" e teve como objectivo "subverter a vontade das pessoas". Houve acusações de "fraude maciça" e pelo menos 16 pessoas morreram em confrontos.

Fotogaleria
Durante a campanha e após as eleições houve vários episódios de violência DAI KUROKAWA/EPA
Fotogaleria
DAI KUROKAWA/EPA

Os pedidos para uma investigação às actividades da Cambridge Analytica chegaram esta quarta-feira à oposição no Quénia, depois de a empresa britânica se ter gabado de gerir toda a campanha do actual Presidente. Uhuru Kenyatta renovou o mandato no ano passado, mas as primeiras eleições foram anuladas pelo Supremo Tribunal devido a acusações de fraude.

Num vídeo gravado em segredo por um jornalista do Channel 4 britânico, um dos directores da Cambridge Analytica, Mark Turnbull, conta como a empresa esteve envolvida na campanha do partido de Kenyatta, o Jubileu: "Mudámos todo o branding do partido duas vezes, escrevemos o manifesto e fizemos pesquisa, análise e comunicação."

"Penso que escrevemos todos os discursos e montámos aquilo tudo – todos os elementos que compunham esse candidato", diz Turnbull na gravação, acreditando que estava a falar com o intermediário de um milionário com interesses nas eleições no Sri Lanka.

Que a Cambridge Analytica esteve envolvida em campanhas eleitorais no Quénia não é novidade – a própria empresa apresenta no seu site, como um caso de sucesso, a primeira vitória de Uhuru Kenyatta, em 2013: "A análise da Cambridge Analytica segmentou a população do Quénia em grandes audiências-chave. Entre as audiências que foram identificadas, o nosso trabalho detectou que os jovens eram um valor subutilizado pelo partido, e que podiam ser muito influentes se fossem mobilizados. Para criar uma união com essa audiência, a equipa de comunicações e de estratégia da Cambridge Analytica fez uma campanha online nas redes sociais para gerar uma base de seguidores gigantesca e activa."

"Fraude maciça"

Em Setembro do ano passado, o Supremo Tribunal do Quénia tomou uma decisão inesperada e inédita ao anular os resultados das eleições presidenciais que renovariam o mandato de Kenyatta. O candidato da oposição, Raila Odinga, rejeitou os resultados e disse que o sistema informático da comissão eleitoral foi pirateado, o que resultou numa "fraude maciça" a favor de Kenyatta. Odinga acabaria por não participar na repetição das eleições e fez as pazes com Kenyatta no início de Março – uma viragem positiva para o país que pode cair por terra após as recentes revelações sobre o trabalho da Cambridge Analytica.

Também em Setembro do ano passado, Hillary Clinton chamou a atenção para a influência da Cambridge Analytica: "As eleições no Quénia acabaram de ser anuladas, e o mais interessante é que essas eleições foram mais um projecto da Cambridge Analytica, a empresa detida pela família Mercer que foi instrumental no referendo sobre o Brexit", disse Clinton numa entrevista à NPR, notando ainda que a empresa "esteve envolvida com a campanha de Trump depois de ele ter sido nomeado".

Para além da família Mercer, a Cambridge Analytica teve no topo da sua hierarquia outra pessoa que foi próxima de Donald Trump – quando foi chamado para director de campanha, o populista e nativista Steve Bannon estava na administração da Cambridge Analytica.

"Campanha criminosa"

Para a recente onda de indignação contra a empresa britânica contribuem duas novidades: a acusação de que tem um esquema montado para se apoderar de gigantescas quantidades de dados pessoais sobre milhões de utilizadores de redes sociais como o Facebook; e a confissão, nos vídeos escondidos do Channel 4, de que usa esses dados para aprofundar divisões, extremar comportamentos e acicatar ódios.

Suspeitas que chegam ao Quénia, onde a violência da campanha do ano passado fez pelo menos 16 mortos; mas também aos Estados Unidos, onde a campanha para as presidenciais de 2016 ficou marcada por uma profunda divisão entre os apoiantes de Donald Trump e os de Hillary Clinton; e ao Reino Unido, onde os argumentos sobre o referendo do "Brexit" assentaram, muitas vezes, na intolerância e no racismo.

"O que sabemos agora é que a Cambridge Analytica ajudou a sequestrar a democracia do Quénia. Manipulou eleitores com anúncios apocalípticos e difamou o opositor de Kenyatta, Raila Odinga, chamando-lhe violento, corrupto e perigoso", diz o jornalista queniano Larry Modowo, num texto publicado no Washington Post.

Ouvido pela BBC, o líder do maior partido da oposição no Quénia, Norman Magaya, diz que a influência da empresa britânica nas duas últimas eleições no país deve ser investigada. "Foi uma campanha criminosa, com o objectivo de subverter a vontade das pessoas através da manipulação, da propaganda. Tem de haver culpados", disse Magaya, apelando ao Reino Unido e aos Estados Unidos que ajudem nas investigações.

Ainda é possível consultar os canais criados pela Cambridge Analytica no Twitter, no Facebook e no Youtube contra o candidato Raila Odinga, que perdeu as eleições mas ganhou no Supremo uma acusação de fraude contra Uhuru Kenyatta.

"Tudo é emoção"

"A nossa função é fazer descer o balde a uma maior profundidade no poço, para perceber os medos enraizados, as preocupações. Não serve de nada lutar numa campanha com factos, porque numa campanha tudo é emoção", disse Mark Turnbull, da Cambridge Analytica, num dos vídeos gravados pelo Channel 4.

Nesses vídeos, Turnbull e o presidente da empresa, Alexander Nix, gabam-se de terem gerido toda a campanha de Donald Trump – e de esse trabalho ter dado ao candidato do Partido Republicano as vitórias tangenciais nos três estados que foram cruciais para derrotar Hillary Clinton, apesar de ter recebido menos três milhões de votos a nível nacional.

Nos casos dos Estados Unidos, do Quénia ou do referendo do Brexit, a mensagem da Cambridge Analytica não é simplesmente a de que consegue identificar bem os vários segmentos dos eleitores e dirigir-se a eles com mensagens adequadas – isso é o que tenta garantir qualquer especialista em campanhas. Acima de tudo, de acordo com Christopher Wylie, antigo trabalhador da Cambridge Analytica e principal autor das denúncias sobre o roubo de perfis do Facebook, a empresa vende aos seus clientes "uma ferramenta de guerra psicológica".

Sugerir correcção
Ler 1 comentários