Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim

São mais duas lojas históricas a desocupar os espaços onde estão há décadas porque o senhorio não lhes quer renovar o contrato de arrendamento. Aos poucos e poucos, estes "negócios da paciência"estão a desaparecer da baixa da cidade.

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Os rótulos que ficaram da antiga Fábrica Âncora SEBASTIÃO ALMEIDA
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O proprietário da Livraria Trindade, António Trindade SEBASTIÃO ALMEIDA
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Margarida Leite, uma das herdeiras do Antiquário do Alecrim SEBASTIÃO ALMEIDA

Partilham a rua que “ajudaram a criar”. Dedicaram toda a vida aos livros, aos documentos, aos manuscritos que a família lhes deixou. Agora, têm o mesmo destino pela frente: fechar as portas. No final de Setembro, a rua do Alecrim já não terá os livros da Livraria Trindade e do Centro Antiquário do Alecrim. 

No princípio de Janeiro, ambos os estabelecimentos receberam uma carta do senhorio a dar-lhes conta de não querer renovar o contrato de arrendamento. O PÚBLICO não conseguiu entrar em contacto com os proprietários do prédio.

“É um espaço que está avaliado em dez mil euros por mês. Mas mesmo que eu pagasse esse valor eles não o arrendariam. Querem o espaço livre”. Se calhar, “para mais um hotel”, diz Margarida Leite, 53 anos, que trabalha no Centro Antiquário do Alecrim desde os 20 e herdou o negócio do pai.

Em 1956, Américo Marques enraizou o seu negócio na rua do Alecrim, num espaço onde antes funcionara a antiga Fábrica Âncora, dos licores, de onde ficaram os rótulos das garrafas que preenchem hoje uma das paredes. E ali ficaram entre livros, desenhos, gravuras, quadros, mapas como o que Margarida diz ser o primeiro mapa impresso de Portugal, de 1560, de Álvaro Seco.

O pai começou com oito anos por vender na feira da ladra. Vendia O Mosquito, a revista com “histórias aos quadradinhos” que foi fundada em 1936. Américo ficou sem mãe muito cedo. O pai era embarcadiço, andava a pôr carvão nos barcos que andavam pelo mundo durante sete ou oito meses. E Américo andava por aí sozinho. Ia buscar o material que vendia, às terças e sábados na feira, aos ferros velhos que compravam o recheio das casas. 

“O meu pai salvou manuscritos, inclusive cartas de D. Sebastião que ele vendeu mais tarde à Torre do Tombo, cartas de reis, primeiras edições [de livros]. Antigamente era tudo para desfazer e fazer papel”, conta Margarida Marques. Se fosse vivo, o pai teria hoje 95 anos. E recorda como, “na febre da ida do homem à Lua”, o pai fez chegar a Neil Armstrong a obra de Francis Godwin, L’homme dans la lune (O Homem na Lua, século XVII). “[O astronauta] mandou-lhe uma fotografia assinada a agradecer o livro, que relatava a primeira viagem à Lua, com uns gansos que levavam o homem”, conta.

Ali, “é tudo original. Não há reproduções”, garante Margarida. Pode-se tocar em tudo, sentir o cheiro, a textura do papel. É também disso que vive um antiquário. Do cliente que entra e se perde entre os detalhes, que troca dois dedos de conversa, que sabe que “ali se encontram coisas que não se encontram em mais lado nenhum”. Diz-nos que a loja se estende muito além da sala da entrada, mas que não mostra mais porque já começou a encaixotar as 14 toneladas de livros que ali tem guardados.

Separar o trigo do joio 

Este ano, foi já anunciado o fecho de portas da Aillaud & Lellos, da Pó dos Livros, em Lisboa, da Leitura, no Porto, ou da Miguel de Carvalho, em Coimbra. Na porta ao lado do Antiquário do Alecrim, a Livraria Trindade tem o mesmo destino. António Trindade, 50 anos, culpa o “terramoto” da especulação imobiliária que atravessa Lisboa e que está “a destruir” o que ali está há muito tempo e que “dá o charme” à cidade.

É ele que está hoje à frente do negócio que diz ter começado pela mão dos avós ainda na década de 1930, em Alcobaça, e por onde passavam “presidentes, ministros, intelectuais, historiadores, escritores”. 

“Isto está-nos no corpo. O que nós fazemos é uma espécie de selecção do trigo do joio. E, às vezes, até salvar, obras do século XVI, XVII”, diz. 

“Aí há dois anos vieram-me aqui dois tipos que encontraram numa cave de uma casa de Lisboa a segunda ou terceira edição do Dom Quixote (1615)”, conta. 

O certo, reconhece António, é que “não se lê como se lia”. Vende muito para estudantes universitários, mas conserva os clientes que procuram “as jóias, as raridades”. É que os livros “têm essa magia e há quem goste de ter na mão a primeira edição da Mensagem”. É isso que mantém estas casas, onde se encontra o que não se vende nas grandes cadeias, diz o livreiro, enquanto aponta para os sacos com volumes de arquitectura que tinha acabado de comprar e para outros cheios com os “setecentos e tal livros” da colecção Vampiro. 

Ainda assim, pode não ser o fim do negócio. Era para sair em Setembro, mas em finais de Abril conta mudar-se para outra loja “relativamente perto” da rua do Alecrim. 

E com isto, quem perde? “A cidade de Lisboa”, diz Margarida. “As casas típicas estão a desaparecer e depois passa a ser hotel com hotel”.

“O centro de Lisboa está a ser vendido a capitais estrangeiros”, continua António. “Tem que se cuidar daquilo que é único, aquilo que dá o charme à cidade. E Lisboa vai perder esse charme”. É que a cidade, nota, vive dos alfarrabistas, das casas de penhores que já desapareceram, das lojas das velas, das Belas Artes, das casas de cerâmica como a vizinha Sant’Ana, que tem também o fim anunciado. 

“Eu não me sinto vítima. O que eu aprendi com os meus pais, com os meus avós e com os meus tios, ninguém me tira. Vou para outro sítio e sou capaz de reconstruir. O que me custa é o que está a acontecer à cidade”, diz António. 

Margarida diz que o Antiquário do Alecrim se vai mudar para uma pequena loja do centro comercial Espaço Chiado, na rua da Misericórdia. Um “espaçozinho com 20 metros quadrados” que não está na rua. E “este tipo de negócios precisa de ter vida, de ter pessoas a passar”. “É o negócio da paciência”, como diz, e “devia ser mais apoiado”. 

Ambas as lojas dizem ter reunido com a câmara e tentado concorrer ao programa Lojas com História, mas admitem já não haver tempo para travar o processo.

Agora, é tempo de começar a encaixotar livros e recordações e assim despir um espaço que sentem como deles. De se despedirem dos leitores e da rua que ajudaram a fazer.

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