A proposta do Bundesbank para reestruturação da dívida pública
A defesa do interesse do soberano devedor não está verdadeiramente assegurada nesta proposta.
Em Julho de 2016, o Bundesbank divulgou uma proposta de metodologia para reestruturação de dívidas soberanas de países membros. A proposta foi referida num dos discursos de Jens Weidmann, presidente do Bundesbank e, mais recentemente, um grupo de economistas alemães e franceses fizeram uma proposta similar. Ou seja, um dos novos instrumentos de política económica das propostas de reforma da zona euro presentemente em discussão, que apresenta elevada probabilidade de vir a ser adoptado pelas autoridades europeias, é precisamente um novo processo “ordeiro” de reestruturação da dívida soberana dos países membros.
Interessa, por isso, analisá-la e, sobretudo, entender se esse (possível) novo instrumento de política europeia interessa ao nosso país, na qualidade de um dos países devedores que apresenta níveis de dívida externa e de dívida pública, em percentagem do PIB, dos mais elevados da zona euro.
Na proposta do Bundesbank, os títulos de dívida soberana dos países membros da zona euro deveriam passar a incluir uma cláusula de extensão, por três anos, do prazo de amortização, extensão essa que ocorreria de forma automática com a aprovação de um resgate a um dado país-membro pelo Mecanismo de Estabilidade Europeu (MEE). Os credores ao adquirir essa dívida teriam conhecimento dessa cláusula e o aspecto fundamental é que a decisão de extensão do prazo de amortização dessa dívida não constituiria um evento formal de incumprimento.
Além disso, os resgates a países-membros teriam de ser precedidos por uma análise sobre a sustentabilidade da sua dívida pública. No caso de esta ser considerada insustentável, o MEE somente aprovaria um resgate ao país membro se este negociasse, num curto espaço de tempo, uma reestruturação da dívida pública com os seus credores. A decisão sobre reestruturar ou não reestruturar a dívida caberia sempre ao país devedor, mas o MEE só aprovaria e financiaria o resgate se o país membro, com dívida pública considerada insustentável pelo MEE, obtivesse o acordo de uma maioria “agregada” dos credores para reestruturar a sua dívida pública, reestruturação essa que seria cumulativa com a obtida através da cláusula de extensão automática, por três3 anos, da maturidade da dívida, referida no parágrafo anterior.
Na proposta do Bundesbank são também analisadas as opções para responder ao problema dos credores (nomeadamente fundos especializados conhecidos como fundos “abutre”) que contestem judicialmente processos de reestruturação da dívida soberana em tribunais internacionais. A ideia seria impedir que pequenas minorias de investidores pudessem bloquear um processo de reestruturação de dívida soberana, agregando os votos dos credores em todas as séries de títulos de dívida, em contraste com a actual legislação europeia que considera a votação dos credores em cada série de títulos de dívida.
Parte-se ainda do pressuposto de que a União Bancária actua em paralelo, sendo capaz de minimizar o impacto de um processo de reestruturação de dívida no sistema bancário doméstico. Ou seja, a União Bancária, ao controlar os rácios de capital da banca e, em particular, o peso da dívida pública nesse capital, contribuiria para que uma reestruturação de dívida soberana de um país membro, “aprovada” pelo MEE, não tivesse impacto no sistema bancário desse país.
A proposta do Bundesbank parece inspirar-se numa proposta de 2013 da Comissão sobre Política Económica Internacional e Reforma (Committee on International Economic Policy and Reform, ou CIEPR) da autoria de peritos internacionais sobre reestruturação de dívida soberana. Parece, aliás, um lapso que o relatório do Bundebank não cite o trabalho da CIEPR. Mas a proposta do CIEPR difere da proposta do Bundesbank em, pelo menos, dois aspectos importantes. Primeiro, na proposta do CIEPR, a reestruturação de dívida aprovada pelo MEE não estaria dependente de um acordo prévio com a maioria dos credores. Segundo, as receitas e os activos dos países cuja dívida fosse reestruturada com a aprovação do MEE beneficiariam de uma imunidade legal na zona euro, que protegeria esses países de litigância jurídica em muitas jurisdições internacionais. Estes dois aspectos da proposta do CIEPR alterariam a dinâmica do processo de renegociação da dívida em favor do país devedor.
O requisito de análise da sustentabilidade da dívida pública, antes da concessão de um empréstimo com condicionalidade estrita, por uma instituição multilateral, já existia nos estatutos do MEE, bem como nas regras do FMI e é também sugerido na proposta do CIEPR. O problema é que raramente esse requisito é cumprido. Assim, por exemplo, o resgate à Grécia de Abril de 2010 é aprovado pela UE e pelo FMI, sem que a dívida pública grega tenha sido previamente reestruturada, apesar de, nessa altura, a generalidade dos peritos considerar que essa dívida pública seria insustentável.
Como se avalia esta proposta do Bundesbank?
Em primeiro lugar, há que reconhecer que é uma proposta construtiva na medida em que se trata de incluir e legitimar institucionalmente um mecanismo de reestruturação de dívida soberana na ordem e lei internacional e, em particular, na legislação europeia. A proposta do CIEPR defendia que o limiar da dívida pública insustentável deveria ser 90% do PIB, mas a proposta do Bundesbank é omissa a esse respeito.
Em segundo lugar, o pressuposto que a União Bancária permitirá quebrar o “nexo causal entre bancos e soberanos” é “wishful thinking” perigoso. É um enorme risco canalizar a poupança doméstica de um país membro para fins que deliberadamente e explicitamente excluem o financiamento ao sector público, podendo resultar em menor crescimento económico, em custos de financiamento público mais elevados e, em última instância, conduzir ou contribuir para a entrada em incumprimento de países membros.
Em terceiro lugar, tende a transformar o MEE num FMI europeu contribuindo para tornar a zona euro num clube de credores e devedores, com o MEE a servir de representante dos credores e ganhando autoridade orçamental máxima, i.e., superior à dos parlamentos nacionais, em resgates a países membros e em processos de reestruturação de dívida soberana. O MEE, na sua qualidade de credor de um país membro, enfrentaria conflitos de interesse que o deveriam excluir desse papel.
Em quarto lugar, a metodologia proposta não considera de forma explícita a necessidade de determinar se a dívida externa do país é insustentável. Ora são os níveis excessivos de dívida externa que tendem a originar níveis insustentáveis de dívida pública. Por conseguinte, não é possível resolver o segundo problema se a sustentabilidade da dívida externa não for assegurada.
Por último, o principal risco é que a decisão sobre – se reestruturar a sua dívida soberana e em que termos – passe do país-membro para o MEE, isto é, na prática, para o Eurogrupo.
Como se constatou no caso dos resgates à Grécia, Irlanda e Portugal e do Tratado Orçamental, os políticos dos países devedores sentem que enfrentam uma “chantagem”, na medida em que não existe verdadeira alternativa ao resgate oferecido pelas autoridades europeias (a única alternativa seria a bancarrota) e, por isso, tendem a ceder a todas as exigências das autoridades europeias.
Em conclusão, nesta proposta de reestruturação de dívida pública defendida pelo Bundesbank – que parece uma proposta de reforma com fortes hipóteses de vir a ser implementada na zona euro – a defesa do interesse do soberano devedor não está verdadeiramente assegurada.