Os sete erros capitais da DGArtes
É altura de reconhecer que tudo isto vai ser uma grande trapalhada se o Governo não revir a situação e corrigir a sua rota em relação à Cultura.
Torna-se difícil começar uma exposição dos factos que suscitam a discussão e o descontentamento do setor das artes, sem evidenciar a notícia mais recente de que companhias como a Circolando, a Orquestra de Câmara Portuguesa e o C.E.M não virão a ter, segundo a decisão do Júri do Concurso do Programa de Apoio Sustentado de 2018, qualquer apoio financeiro.
Contudo, o erro da Direção-Geral das Artes (DGArtes), entidade do Ministério da Cultura que assegura o prosseguimento de políticas públicas para o setor das artes cénicas, na verdade não vem de agora, e não é apenas um, são vários.
Comecemos por reconhecer que a atual configuração governativa criou uma enorme esperança no campo cultural, pelo facto de um Governo do Partido Socialista com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e do PCP poder recuperar pelo menos o terreno perdido aos longo dos anos da troika. É um facto que se reergueu nesta legislatura o Ministério da Cultura, extinto durante a coligação PSD-CDS, mas infelizmente não se recuperou sequer o patamar orçamental mínimo anterior a 2009.
Dotado de 0,2% do OE e com a tutela da RTP e Lusa, para além das que já tinha a nível das artes e do património, o Ministério da Cultura continua a ser o parente mais pobre da democracia e o calcanhar de Aquiles deste Governo.
Importa por isso, no atual contexto, analisar o sistema de apoio da DGArtes que promete agora condicionar de forma irreversível o presente e o futuro das artes performativas (do teatro à dança, dos cruzamentos transdisciplinares às mais recentemente áreas incluídas nos concursos — Teatro de Rua e Novo Circo).
Mas vamos aos erros.
1.º O erro original
Conceptualmente, os concursos diferem basicamente entre si na duração a que respeitam, mas não fazem a fundamental distinção entre cada uma das áreas — Teatro, Festivais ou Companhias. Um dado montante é considerado (por região) sem que se tenha em conta as características de cada um dos promotores culturais. Mas outras realidades europeias mostram-nos que o que é necessário é um sistema com uma arquitetura que permita o acesso de vários tipos de organizações a vários tipos de apoio, eventualmente até cumulativos, o que não é possível colocando todos os candidatos no mesmo campo, a disputar de igual modo as mesmas verbas. O que acontece no atual panorama é que em vez de os montantes serem somados, complementares à atividade de uns e outros, subtraem-se e com isso sufocam-se as companhias e os pequenos coletivos de criação artística. Deveriam por isso existir três concursos — um de apoio à criação, um de apoio à difusão e um de apoio a teatros.
2.º A morosidade
A DGArtes não é capaz de cumprir os prazos que estabelece para si própria. Isto apesar de aos candidatos a apoio exigir escrupulosamente o cumprimento das suas obrigações. Esta situação gera problemas de funcionamento com implicações para todos os que estão envolvidos no processo produtivo, e que se manifesta em salários precários em atraso, incumprimentos vários e na qualidade e sucesso dos espetáculos levados à cena.
O ministro anunciou, contudo, uma linha de crédito da CGD para responder aos atrasos já antevistos que ameaçam atualmente a sobrevivência de várias companhias, situação que apenas remedeia a tragédia e implica o pagamento de juros não reembolsáveis.
3º Um contra-senso moral e pedagógico
A Performarte — organização representativa do sector que junta teatros de várias dimensões, companhias e festivais — repudiou o facto de as receitas de bilheteira não serem consideradas como valorativas das candidaturas. Nesta posição, o Estado está a dizer que despreza a capacidade de auto-financiamento das estruturas, apesar de lhes atribuir um máximo de 33% do orçamento anual. Para além de moral e pedagogicamente ser um contra-senso, o ministro Mário Centeno devia ajudar a uma solução mais adequada.
4.º O tubarão come o peixinho
Teatros grandes, geridos pelo Estado e por autarquias neste concurso, acabam por ter as maiores classificações, o que não admira pois possuem departamentos com recursos humanos suficientes para facilmente disputarem os subsídios. No caso dos resultados já publicados, verifica-se que teatros públicos beneficiam dos apoios que são simultaneamente retirados a companhias e pequenos festivais. Numa segunda esfera privilegiam-se os apoios a festivais, e no fim da cauda fica a criação que é afinal a matéria da qual se alimentam os festivais e os teatros e sem a qual não podem viver. Tudo isto é, por isso, uma contradição.
5.º Um júri a concurso
Acresce a tudo isto o facto de a DGArtes ter resolvido criar um concurso para compor os júris. A ideia parece bondosa, mas na realidade não dá nenhuma garantia a ninguém, pois o campo de escolha da DGArtes fica restrito por natureza e esta arrisca-se em demasia a não conseguir compor um júri realmente reconhecível e reconhecido no meio cultural. A este título, a Circolando foi penalizada por não apresentar, segundo o júri, um plano de comunicação adequado. Ignora o mesmo júri o facto de esta companhia atuar nacional e internacionalmente em salas e festivais, que lhes pagam, e que garantem a comunicação e divulgação dos espetáculos?
6.º Discricionariedade
Não tendo sido atribuído nenhum subsídio a uma das regiões a concurso, a deliberação dos jurados foi no mínimo estranha, pois tendo a verba em questão ficado disponível, optou por transitá-la para uma outra à sua escolha, sem com isso respeitar qualquer critério de isenção e equidade. Quanto muito poder-se-ia esperar uma igual repartição da mesma pelas diferentes regiões a concurso.
7.º O erro mais grave
Há um erro muito grave na conceção dos regulamentos e que é o facto de estipularem critérios de pontuação, montantes globais a atribuir, pontuação mínima elegível, mas não especificarem que um projeto com a pontuação necessária à atribuição do financiamento poderia, caso o dinheiro não fosse suficiente, ver o seu apoio excluído. Mas foi isto que aconteceu na realidade. Essa situação coloca em questão a boa-fé do Estado e empurra para fora do sistema de financiamento público artistas incontornáveis.
Perante os dados, é altura de reconhecer que tudo isto vai ser uma grande trapalhada se o Governo não revir a situação e corrigir a sua rota em relação à Cultura, o que inclui a disponibilização dos 19,8 milhões atualizados pelo valor da inflação, os mesmos que em 2009/2010 existiam e eram mesmo assim insuficientes.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico