A vida de Jane “é o antídoto perfeito para os nossos tempos”

Brett Morgen, o realizador de Cobain: Montage of Heck, aceitou o desafio de fazer um documentário sobre a vida da primatóloga Jane Goodall. O ponto de partida foram 150 horas de gravações feitas por Hugo van Lawick há mais de 50 anos, na Tanzânia. Jane chega este domingo à noite ao canal National Geographic Portugal.

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“A minha missão era aproximar-me dos chimpanzés, viver no meio deles, ser aceite." Hugo van Lawick/National Geographic
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Jane Goodall e Hugo van Lawick Instituto Jane Goodall
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Brett Morgen e Jane Goodall Stewart Volland/National Geographic
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Philip Glass compôs a banda sonora para o documentário Stewart Volland/National Geographic

Jane Goodall tem 28 anos e caminha pela Reserva de Caça do Rio Gombe, no território actual da Tanzânia. Ao fundo, as águas cristalinas do lago Tanganica, nas margens do qual passou muitos anos a estudar o comportamento de chimpanzés selvagens, tornando-se num ícone da luta pela conservação desta espécie. “A minha missão era aproximar-me dos chimpanzés, viver no meio deles, ser aceite.” As palavras são de Jane Goodall, agora com 83 anos, em conversa com Brett Morgen para o documentário biográfico que este realizou sobre a vida da primatóloga britânica. A história da secretária de 26 anos, sem formação científica, que se aventurou na selva africana em 1960 para cumprir o sonho de criança de “viver entre animais selvagens” é contada num filme de hora e meia. Jane chega à televisão portuguesa este domingo à noite, às 22h30, no National Geographic, e mostra como a missão da britânica foi cumprida.

A Brett Morgen (Cobain: Montagen of Heck, 2015) foram entregues 150 horas de gravações, muitas delas inéditas, feitas pelo barão holandês Hugo van Lawick, o fotógrafo e realizador de documentários que a National Geographic Society destacou para acompanhar Jane Goodall durante uma parte dos anos que esta passou em Gombe, onde chegou em 1960 e que hoje é um parque nacional. Além do comportamento dos chimpanzés, o fotógrafo documentou também o dia-a-dia da britânica, em momentos encenados para a câmara que mostravam uma jovem de calções e camisa verdes, sapatilhas de pano, cabelo louro apanhado num rabo-de-cavalo, um par de binóculos ao ombro, de olhos postos na vegetação exuberante em busca da presença de chimpanzés. Jane dá um salto temporal de mais de 50 anos e vemos e ouvimos a protagonista com 83 anos: camisa verde, cabelo grisalho apanhado num rabo-de-cavalo, a voz pausada como se estivesse a contar a sua história pela primeira vez.

Viver em Gombe com o propósito único de observar, estudar e documentar o comportamento dos chimpanzés exigia uma “paciência monumental”. Foram precisos meses para que Jane Goodall conquistasse a confiança dos animais e fosse aceite por eles. “Quanto mais aprendia, mais via que eles são como nós em tantos aspectos”, recorda. Louis Leakey — o paleoantropólogo que iniciou a investigação sobre estes primatas em África e contratou a jovem como bolseira em 1960 — acreditava que “estudar os chimpanzés selvagens poderia ajudar-nos a saber como os nossos antepassados se comportavam na Idade da Pedra”. Pela primeira vez, estes animais foram observados a usar ferramentas e a modificá-las e o nascimento e os primeiros anos de vida de uma cria foram documentados com precisão. Os desenhos meticulosos feitos a caneta por Jane Goodall num caderno pautado foram substituídos pela película de Hugo van Lawick em 1962 e, em 1965, a CBS emitiu Miss Goodall e os Chimpanzés Selvagens, um filme de divulgação científica que Jane Goodall confessou a Brett Morgen estar “repleto de erros e imprecisões”.

Fazer um biopic sobre Jane Goodall, que se estreou internacionalmente em Setembro de 2017, nunca esteve nos planos de Brett Morgen, realizador com uma carreira dedicada a “filmes sobre estrelas de rock com problemas de dependências”. É o próprio norte-americano de 49 anos quem o diz, ao telefone com o PÚBLICO. Não sabia quase nada sobre o percurso da primatóloga, admite, mas depois de ver algumas das filmagens de Hugo van Lawick sentiu “uma ligação”. “Identifiquei-me com a forma como Jane abordava o trabalho e rejeitava a objectividade”, continua, e como “conciliava o trabalho e a família”. Jane e Hugo apaixonaram-se e casaram-se em 1964; três anos depois, em 1967, nasceu Hugo Eric Louis, carinhosamente tratado por Grub.

“Não há dúvidas de que as observações dos chimpanzés fizeram de mim uma mãe melhor”, refere Goodall, numa das várias entrevistas que gravou com Morgen e com quem falou sobre os desafios de educar Grub na selva. Nos primeiros três anos de vida do filho não se afastou uma única noite e as imagens da altura mostram como a criança passava os dias numa espécie de jaula, protegido dos primatas. “Os chimpanzés comem outros primatas e era perigoso para o bebé”, justifica.

“Estas gravações estavam em bobines a gritar para serem descobertas”, diz o cineasta, que traça uma cronologia rápida. As imagens foram filmadas por Hugo van Lawick há mais de 50 anos, descobertas em 2014 e entregues a Morgen em 2015. “E o filme estreia-se na véspera do escândalo de Harvey Weinstein rebentar. É uma coincidência mágica”, entusiasma-se. Isto porque, acredita, Jane Goodall “é o antídoto perfeito para os nossos tempos”: “Ela transcende o conceito de feminismo.” O segredo, crê, está na mãe, Vanne Morris-Goodall, que acompanhou a filha até África para que esta seguisse o seu sonho. “Tornou-se cada vez mais claro para mim, à luz do caso Weinstein, que é igualmente importante os jovens rapazes terem fortes modelos femininos para admirar.”

Quando as 150 horas de gravações, sem áudio, chegaram às mãos de Morgen não se encontravam organizadas: “planos aleatórios”, sem qualquer tipo de notas, que demoraram oito meses a serem catalogados. “As imagens de Hugo são muito bem compostas, calmas, muito bem focadas e expostas”, descreve o cineasta, surpreendido pela qualidade do trabalho do fotógrafo nascido na Indonésia que operava sozinho na selva. “Enquanto realizador sou sempre impelido a perceber como posso usar as ferramentas disponíveis para criar uma história”, revela.

Para concretizar a “experiência imersiva” que pretendia apresentar, Morgen tinha esperança de “encontrar um compositor que abordasse o filme como uma ópera cinemática”. “E quem melhor do que Philip Glass para escrever uma ópera sobre o século XX?”, questiona-se. “Adoro a ideia de ter estes dois ícones juntos no mesmo trabalho.”

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