É muito simples: sigamos a luz de Medeiros/Lucas
Sol de Março encerra magistralmente a trilogia iniciada com Mar Aberto. Tem âncora no Mediterrâneo, mas horizontes mais vastos. "Uma vontade de furar, de escapar à escuridão", despede-se. Todo em volta reluz.
Começa com um pedido que denuncia ambição demasiada: “Ver, deixa-me ver / a feira franca de verdade”. Verdade (o que é?). Começa com um dilema que assusta e angustia: “Oh ,quanto dilema tem o cego / que no cerro ganhou um olho / que só veria por uma vez”. A iluminação (chegará?). Começa num Lampejo, é esse o título da canção, que serve de mote a tudo o que se seguirá. Sol de Março, assim se intitula o álbum que encerra a trilogia iniciada por Medeiros/Lucas com Mar Aberto, álbum dedicado à aventura, sob o signo de Quixote, e continuada em Terra do Corpo, que se debruçava sobre o que somos, seres sociais lutando para preencher um vazio que parece impossível de preencher.
Agora chega Sol de Março, o que retempera, mas que pode queimar, o que oferece promessa de vida, mas pode ser também causa de febres inesperadas. Com ele, acrescenta-se um capítulo riquíssimo à rica história que o antecedeu. São música e palavras feitas corpo, um corpo que dança e esbraceja, que se zanga e se enternece, um corpo que nos pertence e a que não conseguiremos fugir. O disco chama-se “Sol de Março” e será apresentado no Teatro Ibérico, em Lisboa, dia 29 de Março (21h30, 10€). É para o ano inteiro e para os anos que vierem depois deste.
Foi com o faialense Pedro Lucas que tudo começou. Nos tempos que passou imigrado em Copenhaga, o apelo das origens levou-o a cruzar a tradição musical açoriana com linguagens musicais modernas, do rock à electrónica, nos Experimentar Na M’Incomoda, que nos deixaram um álbum homónimo (2010) e O Sagrado e o Profano (2012). O baptismo escolhido era homenagem a O Cantar Na M’Incomoda, álbum de 1998 criado sobre recolhas do cancioneiro das ilhas e gravado pelo terceirense Carlos Medeiros, cujo passado incluía grupos açorianos como os Cantinho da Terceira e colaborações com a Brigada Vitor Jara. Entretanto, Lucas aborda Carlos e o Experimentar dá lugar a dois apelidos: Medeiros/Lucas. Mergulhados nas aventuras de um Quixote transportado para alto-mar, cantaram: “Quando eu nasci neste mundo/ tive a sorte desgraçada/ de ir para aquele navio/ sem saber pouco nem nada." Era o Fado do Marujo, a segunda canção de Mar Aberto (2015). Medeiros/Lucas partiam. Não iam sozinhos, tinham consigo o baterista e percussionista Ian Carlo Mendoza e o baixista e teclista Augusto Macedo.
Pouco depois, João Pedro Porto, escritor micaelense que editou o ano passado o seu quarto romance, A Brecha, recebia um mail com chamada curiosa: “Músicos procuram escritor”. Terra do Corpo, lançado em 2016 é resultado daquele contacto – são de João Pedro Porto as letras nele cantadas. Com novo tripulante a bordo, a viagem continuava.
Falamos com Pedro Lucas no bairro lisboeta que agora habita, Campo de Ourique. Entramos em contacto com João Pedro Porto, que está a dois mil quilómetros de distância, em Ponta Delgada, ilha de São Miguel – não fosse isso e, diz ele meio a brincar, muito a sério, faria com Lucas um disco por semana. Telefonamos a Carlos Medeiros, que nos atende também em São Miguel, mas mais a norte na ilha, em São Vicente Ferreira. “Eles trabalham os dois com uma velocidade que, se meto com eles, caio”, ri primeiro. “Mas acompanho e vou tentando que tudo se encaixe na minha maneira de ser”, dirá depois. Falámos com os três para descobrir mais deste disco que se ouve com assombro.
Entre a luz e a sombra
Voltamos ao início desta história. Que escolheríamos ver se tivéssemos apenas um momento fugaz para o fazer? E a quanto deslumbramento, e a quanto arrependimento, conduziria a nossa escolha? “Ver, deixa-me ver”, ouvimos cantado como prece enquanto a guitarra volteja em indecisão, enquanto as percussões ribombam tensão e as marimbas, no seu som metálico e celestial, procuram oferecer uma escapatória, uma qualquer redenção. “Ter, quero ter/ tudo tido num desejo”, crescerá a voz, quando a prece já é exigência – frustrada exigência –, entre percussões em crescendo marcial e pratos como estilhaços abrindo caminho à vontade. “A primeira frase do disco é ‘deixa-me ver’, não por acaso”, diz Pedro Lucas. “Andamos todos à procura dessa luz e a tentar perceber. Todos os álbuns são, de alguma forma, sobre viagens interiores, mas neste há muito a ideia de procura. A procura de um equilíbrio entre sol e a escuridão, entre a luz e a sombra”, explica.
Se o primeiro álbum era viagem pelo tempo e pela geografia, se o segundo era diagnóstico à contemporaneidade, este é viagem sem tempo, uma introspecção do que somos. Ouvimos Podre poder: “Fugir, fugir da morte/ Essa parvoíce pintada de preto/ Essa promessa sem palavra/ Essa partida parando a parar”. Fugir da morte: talvez seja isso que dá vida a esta música em que todos os caminhos passados de Medeiros/Lucas se encontram e frutificam. Uma encruzilhada onde convivem o swing jazz, feito vogar marítimo, de Os pássaros, as marimbas e a tocante melancolia de Podre poder, as reverberações rock de Obscurantismo e a dança “tropicaliente” de Elena Poena. E cabe mais: o sintetizador e o ritmo gingão de Em condicional, que faria David Byrne salivar por mais música, ou as lições do minimalismo a encontrarem caminho numa Galgar com sabor a pérola do cancioneiro – “sente-se a leiva na veia / sangue posto no peito”.
Antes das gravações, Pedro Lucas enviou um mail à banda. “Quero que ouçam isto antes de começarmos a trabalhar”. "Isto" eram nomes de destaque da música minimalista, como Steve Reich e Terry Riley, era o Big Science de Laurie Anderson, era, para a abordagem à voz, Aldina Duarte ou José Afonso, “que tem sempre muito naquilo que a gente faz”, acentua Pedro Lucas. Na conversa com o Ípsilon dirá que A Seat at the Table, o álbum de estreia de Solange Knowles, foi grande influência nas soluções de produção, e que a trompete do convidado Antoine Gilleron em Calendas surgiu porque “uma trompete à Destroyer ficava mesmo a matar”. É diverso o caldeirão musical de que é feita a música de Medeiros/Lucas. Ainda mais agora, quando, como diz Carlos Medeiros, “se sente bem um espírito de banda, um respirar de banda”. No entanto, toda essa diversidade não os afasta do seu centro vital, do arquipélago que fizeram nascer. Pedro Lucas desvela o mapa: “A bacia mediterrânica, desde os sons do Médio Oriente que ouvimos no Trapezista, até à Grécia e aos Balcãs, ao norte de África e à música ibérica”.
Sol de Março foi, percebe-se, obra pensada e maturada. “Como o tema era a razão, queria que fosse mais depurado, num processo longo que permitisse trabalhar as músicas durante mais tempo”. O objectivo, explica, não era complexificar. Pelo contrário. “Queria mais tempo para que o resultado final fosse mais directo, sem subterfúgios ou barroquismos”. Obra curiosa e graciosa, este Sol de Março em que a razão é desafiada pela própria natureza da música e das palavras que a acompanham. “Abordar a questão da razão era quase uma sequência lógica [depois dos álbuns anteriores]”, confirma Carlos Medeiros. “Se bem que aquilo… Às vezes a cantar parece-me que estou a seguir as instruções, mas a forma como chego lá é quase teológica. É uma luz que vem”.
O bailado de Elena Poena
Há dois anos, quando os entrevistámos na Tabacaria, café histórico de Ponta Delgada, dizia-nos João Pedro Porto que algo importante o ligava àqueles músicos, o facto de não encontrar nada no seu labor que fosse inconsequente. “Ninguém ouve Mar Aberto e fica indiferente. Eu tento o mesmo na escrita. Não sei se é o que passa, mas nada do que se escreve [em Terra do Corpo] é vazio, oco, torpe”. Não o é novamente em Sol de Março.
“Tínhamos feito uma coisa quixotesca, romântica, o homem que se deixa ir em viagem. Depois veio o corpo, só faltava a razão", defende Pedro Lucas. "É a evolução de fala o [António] Damásio, primeiro o corpo, depois a emoção, e a emoção cria a razão. A ordem é que não está certa [de disco para disco]”. Nem era necessário que estivesse. Os álbuns funcionam como três espaços com vasos comunicantes e não há sequência cronológica a seguir. Podemos viajar de uns para os outros, do sangue tingindo o mar da Batalha de Lepanto para a Safra de Gente de Terra do Corpo, daí para a dança luxuriante da Elena Poena – e seguir depois, da frente para trás e de trás para a frente, interminavelmente.
Elena Poena é uma figura central em Sol de Março, personagem mitológica inspirada em Sísifo, o pobre filho do rei da Tessália condenado a carregar uma pesada pedra de mármore montanha acima, apenas para a ver cair montanha abaixo e assim continuar, pedra montanha acima, pedra montanha abaixo, para toda a eternidade. “Pusemos os mitos clássicos todos numa panela de pressão e deixámo-la explodir”, dir-nos-á João Pedro Porto. Pois bem, dessa explosão surgiu esta “mirrada endiabrada/ e travessa de assanhar” que, tal como Sísifo, vivia tranquilamente os seus dias naquele tormento de empurrar a pedra pelo monte. Porém, ao contrário de Sísifo, houve um dia em que a monotonia se quebrou. Foi o dia em que a pedra decidiu abandoná-la e não mais subir e descer a montanha. Esse foi o dia em que ela, Elena Poena, finalmente livre, não soube o que fazer além de continuar ela mesma a rolar, montanha acima, montanha abaixo – e, “y en su perdición, empezó a bailar”, revela a voz off no final da canção. “Sempre que criamos uma personagem completa e complexa, tem que ser uma mulher. Podíamos ter criado mais um Sísifo, um Tântalo, um Ícaro, mas saiu alguém muito mais interessante.”, defende João Pedro Porto.
Sol de Março não procura dar respostas. De certa forma, vai mais fundo que isso. “Joga com a dualidade que existe entre ter a razão e já não conseguir ter a ignorância”, aponta João Pedro Porto. Aqui, como as marimbas de Ian Carlos Mendoza ou a guitarra encantatória de Pedro Lucas, viajamos em círculo. “Somos criaturas duais e vivemos num círculo paradoxal entre liberdade e distopia. Passamos constantemente do utópico para o distópico. Não temos mais ou menos, fazemos círculos à volta do mais e do menos”. Daí a analogia com o sol de Março, esse que ora limpa e regenera, ora nos queima de febre. Carlos Medeiros: “Esta viagem é humana e diz respeito a todos”. Não se procurem traços do sentir açoriano (o que quer que isso seja) ou do pulsar português (o que quer que isso queira significar). “Diz respeito a todos, sejam portugueses ou japoneses”, repetirá Carlos Medeiros. “Não somos especiais. Felizmente, não somos especiais”. Mas todos procuramos.
O contrabaixo do convidado João Hasselberg inquieta-se num tumulto controlado. A guitarra sobe em espiral, chispando electricidade, e a secção rítmica inquieta-se enquanto o Fender Rhodes de outro convidado, Tine Grgurevic, redobra o fulgor. A voz cresce com todos eles: “É um salto dado ao alto/ Sem querer voltar ao chão/ Uma vontade de furar/ De escapar à escuridão”. Sol de Março está a despedir-se. Tudo em volta reluz.
No café de Campo de Ourique, a chuva faz uma trégua. Pedro Lucas fala da importância dos convidados Antoine Gilleron, Gonçalo Santos (bateria), João Hasselberg, Tine Grgurevic e Rui Souza (teclas) e esmiuça aquilo que procurava atingir musicalmente. Dirá então, em conclusão: “O objectivo é sempre a simplicidade, e a simplicidade é uma coisa muito difícil”. De facto.
De facto a simplicidade é muito complexa. É-o certamente como a fazem Medeiros/Lucas, banda que recupera e reinventa mitos da Antiguidade, Sisífos tornados corpo de mulher. Não, não é certamente simples a música de Medeiros/Lucas, criada por quem passa de Solange Knowles a caminho do minimalista Steve Reich, antes de chegar à África na voz de José Afonso. Mas é simples a forma como recebemos esta música. Foi assim com o romantismo aventureiro do Mar Aberto e foi assim com Terra do Corpo. Assim continua a ser em Sol de Março, que nos chega em guitarras com sede da África tuaregue, em marimbas e percussões luxuriantes, em trompete soprando dolências jazz, num violoncelo convocando assombrações e naquela maravilhosa voz que se faz maior com as palavras que canta. Quando nos chega tudo isso, arrepio e descoberta, razão e emoção, é realmente muito simples.
É música maior a que Medeiros/Lucas nos oferecem agora, encerrando uma trilogia que guardaremos para aproveitar, visita após visita. Acostamos nela para ver um pouco mais longe, para mergulhar mais profundamente naquilo que somos (e que não saberíamos como contar). Simples, não é?