A fotografia de António Júlio Duarte apareceu quando a luz do cinema se apagou

Nos intervalos da rodagem de Colo, foi observando os actores, as paisagens as coisas que fizeram o filme. Dessa experiência construiu Ensaio, livro que captura a condição intemporal da adolescência numa narrativa de impasses e fugas.

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Será apropriado dizer que António Júlio Duarte salvou coisas que ficaram foram de campo, consagrando-as no palco mudo da imagem fotográfica António Júlio Duarte
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Há um momento em que Júlia (Clara Jost) e Marta (Alice Albergaria Borges), as duas protagonistas de Colo, nos devolvem o olhar, expectantes, curiosas. Não o fazem no interior do filme de Teresa Villaverde, mas no retrato fotográfico que abre Ensaio, o livro de António Júlio Duarte (Lisboa, 1965). Editado pela Pierre von Kleist, com apresentação agendada para amanhã na Cinemateca de Lisboa, trata-se de um objecto que nasceu do filme, que viveu com o filme antes de ganhar uma vida própria. Um livro que se folheia, libertando imagens que se distanciam de Colo para desenharem a sua própria narrativa. Ao retrato das duas raparigas, seguem-se paisagens de um rio, de florestas, de espaços fechados, instantes de outros jovens à espera, suspensos em estados indefinidos, sob a luz protectora do artista.

A relação artística de António Júlio Duarte com o cinema começou há sete anos. Amigos comuns levaram-no a acompanhar a rodagem de uma curta-metragem de Sandro Aguilar, Sinais de Serenidade Por Coisas Sem Sentido (2012). Apreciava o universo do cineasta, queria ver como trabalhava e chegou mesmo fazer fotografias nas filmagens, duas das quais integraram a exposição que realizou, em 2016, na Galeria Pedro Alfacinha. Foi por essa altura que surgiu um convite: “O Sandro perguntou se eu não gostaria de ser actor num filme dele.  Aceitei e participei em Bunker (2015)”, revela.  “E através da Clara Jost [a jovem actriz e António Júlio Duarte são os protagonistas dessa curta], conheci a Teresa Villaverde que me desafiou a acompanhar a rodagem de Colo, com liberdade total. Entretanto, o Sandro Aguilar convidou-me para a sua nova longa-metragem, Mariphasa, que este ano se estrou em Berlim.  Sou actor outra vez, tenho uma ligação estranha com o cinema”.

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António Júlio Duarte Miguel Manso

Nos intervalos, à espera

Em Ensaio, o artista não é actor, mas alguém que trabalha deste lado, com o seu ponto de vista, o seu olhar, os seus gestos, aproximando-se e afastando-se do filme. Quem se envolver com o livro rapidamente perceberá que não é o resultado de um trabalho documental. “Nunca tive a preocupação de seguir a narrativa do filme. Não era o que me interessava. Também não fazia sentido fazer fotografia de cena. Nem os filmes precisam hoje disso. Com o digital, é muito fácil tirar imagens que correspondem exactamente ao que está a ser filmado, aos planos de câmara. Também não queria um making-of, um trabalho semelhante ao da Eve Arnold  [fotógrafa americana que realizou para a agência Magnum um trabalho em redor de The Misfits, filme com Marilyn Monroe e Clarke Gable, realizado por John Huston em 1960], à volta dos os bastidores, da relação dos actores com a equipa”.

António Júlio Duarte podia criar um objecto, sem o compromisso de manter uma ligação com o filme de Villaverde. Restava saber de que modo esse processo se materializaria. “É uma situação um pouco usual quando se trabalha num filme, nestas condições. Encontrava-me dentro de um universo que foi construído, que foi pensado por outra pessoa. Como o poderia ou devia abordar? Pensei desde logo que ia manter o meu método, usando o flash e a luz externa e não a luz do director de fotografia do filme. Isso levou a que fotografasse, por uma questão prática, nos momentos de pausa e nos ensaios, quando podia interferir nas filmagens, como se estivesse a fotografar qualquer coisa que não era o filme”. Estaria a fazer outro filme? “Talvez, ou então apenas a relacionar-me com o que estava à minha volta, fotografando. Muitas vezes sentia que não estava a fotografar personagens de um filme, mas os actores. Tirando a fotografia inicial do retrato mais frontal, não houve da minha parte qualquer direcção sobre o que estava a acontecer”.

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Não teve a preocupação de seguir a narrativa do filme nem de fazer fotografia de cena; trabalhou deste lado, com o seu ponto de vista, o seu olhar, os seus gestos aproximando-se e afastando-se do filme António Júlio Duarte

Em Ensaio, sucedem-se as imagens de pausas, paragens, esperas. Há uma candura nos gestos, nas poses dos corpos, nas relações que eles estabelecem entre si, na vulnerabilidade que comunicam. E página a página, sem se anunciar, um tópico vai soprando das imagens. “As fotografias foram feitas nos intervalos, mas as actrizes e os actores ainda não tinham saído completamente do universo ficcional. É como se ainda estivem a preparar-se, a ensair”. Assim que o trabalho se concluiu, António Júlio Duarte interrogou-se: “O que vou fazer com isto, o que quero fazer com isto? Que narrativa quero construir com esta imagens? Ao olhar para elas, percebi que queria trabalhar o universo dos adolescentes, que essa seria a linha do livro, que iria concentrar-me nisso. O livro é pensado muito numa espécie de narrativa de uma passagem para o universo dos adultos”.

É apropriado falar de afinidades com o universo de Villaverde, em particular em Três Irmãos, (1994), Os Mutantes (1998) ou Transe (2006). E, no entanto, há em Ensaio um tom que não é o de desconsolo, mas o de uma energia difusa, tomada por sentimentos de tensão e ansiedade, que se faz com pontos de fuga nas imagens do rio, dos bosques. “Não quis contar uma história. São imagens que têm mais a ver com momentos de indefinição. Há uma rigidez nos actores e nas actrizes pelo facto de estarem a ser filmados, mas há também um desconforto com o próprio corpo, com a vida, com tudo. Para mim, foram mais essas imagens que procurei, as tinham mais a ver como esse universo adolescente da procura, do desejo.  Imagens mais ansiosas.  Tudo o que fotografei, para mim, pedia isso, mais do que o lado pesado sobre a crise da família, a crise politica, económica”.

O real como se fosse ficção

O tema vai-se manifestando no livro, no modo como as figuras negoceiam, ensaiam a sua presença entre o real e a ficção.  “Mesmo os protagonistas”, sublinha, “como não são actores profissionais, encontram-se nesse espaço em que são eles próprios e ao mesmo tempo são personagens de ficção. Enquanto o actor está sempre no espaço da ficção. Isso nota-se nas nos adultos ou na relação que têm com as câmaras”. António Júlio Duarte refere-se às imagens dos pais, interpretados por Beatriz Batarda e João Pedro Vaz. “Estão num outro registo, num espaço de concentração, num estado de personagens, no papel deles. Já todos estes não-actores vejo-os num espaço mais indefinido, tão indefinido como o meu dentro do filme que, a dada altura, não sabia muito bem qual era.  Devia ser fiel ao filme, sair dele? Acabei por sentir mais identificação com esses não-actores do que com os actores que estavam a fazer o seu papel”.

Há em Ensaio imagens que fogem do filme. As realizadas no Liceu Camões, em Lisboa, ou as de paisagens à beira do Tejo. Como se o artista tivesse visto aí outras coisas. A escola foi um desses lugares que, nas suas deambulações, teve oportunidade de descobrir. Vemo-la aliás, evocada na capa do livro: a fotografia do público jovem num concerto de rock. “Esse liceu tem espaços como já não existem”, recorda. “Lembro-me de uma cave enorme onde os alunos faziam concertos, projeções de filmes. É um lugar com um ambiente diferente. Isso também foi uma boa surpresa, conhecer os jovens figurantes, pessoas muito criativas, empenhadas. Fiquei com uma certa esperança no futuro”.

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Foi como entrar num território de ficção, foto-grafando-o como se fosse real, para o tornar ficção outra vez António Júlio Duarte

Será apropriado dizer que António Júlio Darte salvou coisas que ficaram foram de campo, consagrando-as no palco mudo da imagem fotográfica, dando-lhes uma importância que no filme escapa ao espectador? Veja-se a dália tombada, o palco vazio do concerto, a sala sem alunos ao fim da tarde. “Estive sempre integrado na equipa e passei muitos dias sem fotografar, apenas a ver. O tempo de rodagem foi grande com uma equipa técnica enorme. Houve dias em que não tirei uma única fotografia. Também não revelei o dispositivo do cinema. Não se vê o projector, o reflector. No fundo, foi quase como entrar num território de ficção, fotografando-o como se fosse real, para o tornar ficção outra vez. Há coisa que reconhecemos do filme e outras que não”.

Resumindo, estamos definitivamente no universo de António Júlio Duarte, com o seu ponto de vista, o seu tempo, o olhar que construiu com os actores. “Foi uma relação de grande aceitação, de grande cumplicidade. Uma óptima experiencia. Num filme, vives uma vida diferente durante um tempo muito grande, como se tivesse mudado de família. Estive rodeado de pessoas que trabalhavam para um projecto comum, quando a fotografia é um trabalho solitário, que se faz sozinho”. Estas condições ajudaram o artista a afastar-se do filme, mas não completamente. Mesmo depois do trabalho de selecção realizado com André Príncipe e José Pedro Cortes, da Pierre von Kleist, uma ligação permanece entre os dois objectos. “O livro existe separado do filme, mas quis sempre que não houvesse um corte, até por uma questão de justiça em relação aos actores. Se não tivermos alguma referência ao filme ao ver o livro, não sabemos o que estamos a ver”. E o que estamos a ver? “Os próprios actores, pessoas novas, cheias de vontade de viver”, insiste António Júlio Duarte, “que estão nessa fronteira entre aquilo que estão a representar e a aquilo que são”. Numa das fotografias de Ensaio, vê-se uma sala de aula vazia enquanto no exterior se nota a presença de palmeiras.  Para o artista, é uma imagem emblemática da experiência da adolescência.  “Essa sala é espaço onde não queres estar, de onde queres fugir. Acho que isso é uma sensação intemporal, por mais que mudem os tempos”. Foi esse estado existencial e generoso que António Júlio Duarte iluminou dentro e fora, perto e longe de Colo.

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