Celebrar António Sardinha, ou a antítese do lugar para onde quero ir
Tenho direito a não me identificar e a pedir que não me obriguem a ler este nome na placa identificativa de uma artéria lisboeta.
Cada época tem a sua visão, as suas narrativas sobre os acontecimentos, sobre o fluir e sobre as personagens. Cada ideologia distribui prémios e afasta incómodos. Reescrevemos o passado de acordo com as vontades do presente. Mas estas alterações ao sabor dos ventos dominantes são interessantes. Mostram um certo pulsar social e político. Dão-nos uma visão de como a heroicidade pode, por um decreto, ser transformada em crime de lesa-pátria.
E, por vezes, há crimes que não são de lesa-pátria, mas sim de lesa-humanidade. Há avanços que civilizacionalmente fazemos e que não queremos abandonar, nem dar, sequer, possibilidade de mostrar que estamos bem como estamos. Não, no que respeita ao respeito pelo outro, no que respeita ao Humano, não podemos pensar que o adquirido é, de facto, adquirido.
Neste que é ano em que comemoramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não nos podemos contentar com distrações, com ausências e com silêncios. Há que consolidar estes princípios de valorização do ser humano, da sua diversidade, do direito que cada um de nós tem em ter as suas ideias, as suas pertenças, as suas identidades.
Há poucas horas descobri que em Lisboa há um topónimo que recorda António Sardinha, integrista, antiliberal, antimaçónico, anti-tudo-o-que-de-liberdades-defendemos. Por fim, foi talvez o maior mentor, a base, do antissemitismo em Portugal. Foi dado no início do Estado Novo; mas ainda existe.
Os primeiros laivos verdadeiramente antissemitas em Portugal, na mais correta aceção da palavra, encontramo-los próximos de um quadro ideológico e nacionalista muito específico, nos grupos que se vão organizando na década de 10 do séc. XX contra a implantação da República, grupos monárquicos, antiliberais e antimaçónicos. Talvez o primeiro autor panfletário antissemita tenha sido Mariotte, i.e., o P.e Amadeu de Vasconcelos, que em 1913 escreveu Os Meus Cadernos, onde vituperava contra a “raça maldita”, os judeus.
Mas o ano de 1914 seria um ano bastante importante na formulação do antissemitismo português. Hipólito Raposo publicava a Nação Portuguesa e António Sardinha, que nos traz aqui, em edição de autor, publicava O Sentido Nacional de Uma Existência/António Thomaz Pires e o Integrismo Lusitano. Sardinha vocifera contra toda a mistura de gentes que os Descobrimentos implicaram, dando especial destaque à “porca infeção hebraica, de que não escapámos incólumes” (p. 41). Sardinha, o “paladino do antissemitismo lusitano”, nas acertadas palavras de Jorge Martins, defende o monarca D. João III na sua luta pela instalação da Inquisição em Portugal e demonstra a necessidade e vantagens desse tribunal religioso perante as “influências do morbo judengo”.
Sardinha seria um autor com uma produção continuada no campo do ódio contra os judeus. No ano seguinte, em 1915, daria ao prelo a obra O Valor da Raça. Nesta obra, que se destinava a concurso para professor da Faculdade de Letras de Lisboa, Sardinha revelava uma total ignorância da história judaica, assim como da própria Pré-História humana, que aqui usava para definir uma “raça lusa”. Misturando referências à Atlântida, Sardinha defendia uma homogeneidade étnica e territorial com base na mais distante antiguidade. No ano seguinte, reforçaria esta tese com o texto “O território e a raça” incluído na obra A Questão Ibérica, no qual argumentava ainda mais veementemente a origem atlante da raça lusitana. Mais tarde, no Glossário dos Tempos, editado em 1942, Sardinha diria que a raça lusa era a última barreira ao “alastramento semita” (p. 162).
No seu ideário, Sardinha associava os judeus à maçonaria. Em 1940, no livro Ao Princípio Era o Verbo, acusa o Marquês de Pombal de ser a origem de toda uma linha de degenerescência e de assalto à natureza cristã da identidade, bem como o liberalismo de ser uma “forma espiritual do semitismo” e o capitalismo uma “inegável extração talmúdica” (p. XXII-XXIV).
Citamos o fim de um seu soneto, “Madre Inquisição”, retirado da obra editada em 1937, Pequena Casa Lusitana, na medida em que mostra da melhor forma o pensamento radical de Sardinha, defendendo e desejando a Inquisição:
Ó santa Inquisição, acende as chamas!
E no fulgor terrível que derramas,
Vem acudir à pátria portuguesa!
(p. 122)
Palavras para justificar esta afirmação podemos tê-las na leitura dos tempos. É a época, sim. Mas não somos nós, hoje. E é aqui, na tensão entre o que foi e o que quero passar para o futuro, que eu me tenho de posicionar como cidadão e como pai. Sim, António Sardinha existiu, como muitos outros antissemitas portugueses. Mas quero valorizar tudo o que ele abominava: o judeu, o muçulmano, o protestante, o ateu, o maçon, o liberal, o republicano. O meu mundo é cosmopolita e é esta diversidade que eu quero passar como legado ao futuro.
Hoje eu não me identifico com movimentos como o que Sardinha defendia e alimentou. Hoje, a sociedade em que eu vivo e que pretendo deixar para os vindouros é de Igualdade, de Fraternidade e de Diálogo. Sobretudo, é de Respeito. Tenho direito a não me identificar e a pedir que não me obriguem a ler este nome na placa identificativa de uma artéria lisboeta, cidade que desde o século XV foi de “muitas e desvairadas gentes”, como afirmava Damião de Góis, outro perseguido pela Inquisição que Sardinha desejava.
Lisboa representa exactamente o oposto de António Sardinha.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico